Turismo: prisão onde Carlos Gardel foi preso não tinha muros
Repórter entra na cela onde ficou Carlos Gardel - um raio misterioso
Por Fábio Lau*
Carlos Gardel foi um dos maiores artistas do seu tempo. Nasceu no século XIX e atravessou o XX fazendo sucesso não apenas na Argentina, país que adotou como seu, mas em outras nações do continente mesmo onde a língua oficial não era o espanhol - como no Brasil, por exemplo. Mas o que pouca gente sabe é que o mito, que nasceu no Uruguai (ou teria sido na França) amargou anos de cárcere em uma das mais temidas prisões do mundo: Ushuaia, ao sul da Argentina, lugar conhecido como Fim do Mundo.
Este jornalista esteve no fim do ano de 2019 na região da Patagônia onde está a capital das Ilhas Malvinas - aquelas que ingleses e demais europeus, além de americanos -insistem em chamar de Falklands. Foi à Ushuaia onde a escuridão da noite, nesta época do ano, verão, só cheia por volta da meia noite. E, ao visitar a prisão, se deixou fotografar na cela onde teria ficado Carlos Gardel - que lá cumpriu pena por crimes diversos.
Carlos Gardel - artista e mito
A cela onde foi mantido encarcerado o mito Carlos Gardel é a da foto no alto - onde o repórter experimenta alguns segundos de cárcere. O detalhe que chama a atenção de quem ali vai em busca de pesquisa é que os guias não falam sobre a passagem do artista em Ushuaia, mas apenas de alguns poucos presos políticos e encarcerados comuns. Pudor? Talvez. Mas parece que há uma orientação. Afinal, um tabu sobrevive sobre a biografia do artista.
O maior nome da música argentina, nascido no Uruguai, conforme revelam documentos oficiais que estão na prisão, respondeu e foi condenado por crimes como contrabando, exploração de prostituição e falsificação de documentos. Foi encarcerado no presídio do Fim do Mundo, em Ushuaia, na primeira metade do século XX. Gardel, sobre quem paira a dúvida sobre ter nascido na França, dois anos antes da certidão uruguaia, era um exímio falsificador de documentos. Daí a dúvida sobre informações biográficas.
Prisão sem muros
É espantoso imaginar uma cadeia sem muros, certo? Mas ali os responsáveis pelos condenados deixavam o prisioneiro no cais. E, ato seguinte, o que se via era o condenado correndo para o presídio. Detalhe: jamais houve uma fuga. E as razões são metereológicas: no verão a temperatura alcançava, no início do século passado - antes do aquecimento global, portanto - dois graus. No inverno ela cai para -30 e toda a região é tomada por neve. O mar, bravio e gelado, e as geleiras ao redor se encarregavam do resto.
Gardel, pelo que se lê em pesquisas soltas na internet, foi um preso discreto e jamais experimentou depressão. Ele cantava para os demais detentos especialmente durante as refeições. Cumpriu pena de pouco mais de dois anos e retomou a carreira. Mas por pouco tmepo: morreria no auge do sucesso, em 1935, num desastre aéreo na Colômbia.
Uniforme compatível ao que Gardel usava na época
O trauma causado pela morte inesperada se encarregou de limpar a ficha criminal. Fãs e até pesquisadores passaram a duvidar dos delitos a ele atribuídos. Algo como " um raio misterioso..."
Muita gente diz, hoje, que Gardel sofreu uma tentativa de difamação após sua morte por conta da sua oposição aos regimes fascistas que lá se instalaram.
Mas o fato é que ele esteve preso sim. Ana Turón, dona de um museu sobre o tango, é uma das defensoras da tese de que Gardel não era tão delinquente assim, mas só um pouco:
"Há quem diga que admira Gardel mais se ele tivesse um passado obscuro do que se não tivesse. Mas não podemos fingir que ele tinha a história que queremos", comenta Ana, a mulher que valoriza a maior coleção bibliográfica da cidade de Buenos Aires sobre o tango - que se confunde com Gardel.
Centolla - crustáceo comum na região de Ushuaia
A questão é: por que Gardel perderia em genialidade musical caso de fato se confirmasse - como nos parece serem verdadeiros - os delitos a ele atribuídos? Ao seu lado, no cárcere, outros grandes nomes da política e das ciências foram encarcerados. Mas também criminosos comuns condenados pelos mais diversos delitos.
Carlitos, como era chamado, sobrevive e vende discos quase um século após sua morte. Seu nome é dos mais reverenciados entre o povo ao lado de Evita e Peron. O artista sobreviverá por outros tantos séculos independentemente de atos alheios à musicalidade ocorridos no seu passado. E, se quer saber, eles ajudam a dar ainda mais molho ao tango e ao homem que lhe deu vida e o pôs na história.
* Fábio Lau é jornalista, fã da Argentina, de Gardel e também da centolla - o caranguejo gigante farto na região do Fim do Mundo.