Vítimas de violência fogem e são acusadas de sequestro dos filhos

Autores: Naiana Andrade.

Raquel Cantarelli espera ouvir a campainha e encontrar do outro lado da porta as duas filhas. As crianças de 4 e 6 anos foram levadas da capital do Rio de Janeiro, há cinco meses, para ficar com o pai, na Irlanda. A brasileira acusa o ex-marido de abusar sexualmente de uma das filhas, à época com dois anos, e de cometer frequentes agressões físicas e psicológicas contra ela, quando moravam juntos no exterior. 

“Fui acordada às 6h por policiais federais armados com fuzis para entregar as minhas filhas para o próprio agressor delas”, conta a mãe. Tanto a Justiça europeia quanto a brasileira acusam Raquel de sequestro das próprias filhas, porque ela, conforme relatou, para fugir da violência do ex-companheiro, voltou ao Brasil trazendo as crianças. Um dos artigos da Convenção de Haia, em vigor desde 1980, com adesão de mais de 100 países, define como “sequestro internacional” retirar criança ou adolescente menor de 16 anos do seu país de residência sem autorização de um dos genitores, seja pai ou mãe. Esse argumento jurídico tem sido utilizado, mesmo quando as mulheres são vítimas de violência doméstica. 

A Agência Pública conversou com brasileiras que relataram ter sofrido violência doméstica e que foram acusadas de subtração internacional de crianças e adolescentes pelos ex-companheiros. Uma delas pediu para ter sua identidade preservada. 

Um abaixo-assinado organizado pela ONG internacional que presta apoio a vítimas de violência doméstica, Revibra, e por outras organizações, como o coletivo Mães de Haia, pede que o texto da Convenção seja revisto para evitar que mães vítimas de violência doméstica sejam penalizadas. O documento, que já tem 37 mil assinaturas, foi entregue ao Secretário-Geral da Conferência de Haia, Christophe Bernasconi, durante a 8ª Reunião da Comissão Especial de Haia, em outubro deste ano. 

“O quadro de violência contra a mulher pode afetar também os filhos, ainda que indiretamente. Essa situação se confronta com a falta de uma determinação na Convenção de Haia de se investigar os casos de denúncia de subtração de menores em situações em que há alegação de violência doméstica”, explica Alice Castelani, pesquisadora em Ciência Política pela UFMG e mestra em Segurança Internacional pela Escola Superior de Guerra (ESG). “Para que a Convenção, efetivamente, cumpra seu objetivo fundamental de garantia dos direitos das crianças internacionalmente, é urgente ser empreendido um debate de revisão dos seus termos que considere a realidade global de violência sofrida pelas mulheres e também seus filhos”, afirma.

Separadas dos filhos

Quase 90% das mulheres acusadas de sequestro internacional, que pediram ajuda relacionada à aplicação da Convenção de Haia, deixaram o país com seus filhos fugindo de situações de violência doméstica. O dado é da ONG Revibra Europa. Entre novembro de 2019 e dezembro de 2022, a entidade analisou 278 pedidos de ajuda relacionados à aplicação da Convenção de Haia. No total, 98% dos casos são de pais que acusaram suas companheiras ou ex-companheiras de sequestro internacional. 

“Infelizmente, a imensa maioria delas escapa com as crianças para se proteger de lares abusivos onde ocorre a violência doméstica”, afirma Márcia Baratto, cientista política e coordenadora de pesquisa da Revibra. 

Raquel Cantarelli diz que suas filhas não falam inglês e estão privadas de qualquer contato com ela desde que deixaram o Brasil. Ela conheceu o pai das meninas em 2015. Quando a primeira filha nasceu, Raquel começou a desconfiar do comportamento do ex-marido, que já tinha hábitos estranhos de intimidade com a filha de cinco anos, fruto de uma relação anterior. “Ele queria trocar fralda da nossa filha de dois anos o tempo todo, por isso passei a impedir, embora ele dissesse que só queria ajudar”, conta.

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Tanto a Justiça europeia quanto a brasileira acusam Raquel de sequestro das próprias filhas

Em dezembro de 2018, a brasileira diz que acordou com o grito da filha mais velha, que dormia em outro quarto da casa, seguido de um choro muito forte. “Quando abri a porta me deparei com o genitor dela tampando a boca da minha menina que estava nua no trocador para que não fizesse barulho, talvez para não me acordar. Ele estava apenas de cueca e com ereção”, lembra emocionada.

Ela fez denúncia e conseguiu medida protetiva concedida pela Justiça irlandesa. Com ajuda da ONG Revibra e do Itamaraty, conseguiu novo passaporte fornecido pela Embaixada do Brasil em Dublin. Com isso, ela conseguiu voltar ao Brasil escoltada por policiais. Durante quatro anos, Raquel viveu com as filhas no Rio de Janeiro. Mas, em 14 de junho de 2023, policiais federais foram até sua casa, cumprindo ordem judicial, e levaram as duas crianças. A decisão se baseia no que diz a Convenção de Haia sobre subtração internacional de menores.

“O meu ex-marido entrou com recurso em segunda instância e infelizmente não fui informada e nem intimada a depor e os prazos para recorrer também não foram respeitados”, afirma Raquel. Ela aguarda uma última decisão judicial para trazer as meninas de volta.

Em julho deste ano, a Justiça Federal brasileira determinou o retorno da filha de Renata*, que está com o pai na Europa. Dez anos atrás, ela foi acusada de sequestro internacional da própria filha depois de voltar com a criança para o Brasil para fugir do relacionamento violento com o pai da menina.

A decisão de uma Vara Federal de Curitiba, em 14 de julho deste ano, a qual a Pública teve acesso com exclusividade, determina prazo de 45 dias a partir da decisão para o regresso da menina a solo nacional e a emissão de passaporte atualizado juntamente com permissão para viagem desacompanhada, para quando for permitido o retorno.

Renata aguarda o cumprimento da decisão. Ela conta que, em 2010, conheceu o ex-companheiro na Europa. Em menos de 3 meses, começaram uma intensa relação. O namorado europeu convenceu Renata de que deveriam ter logo um filho, mesmo sem casamento oficial. Quando engravidou, ela diz que ele queria forçá-la a fazer um aborto e teria confiscado seu passaporte.

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Organizações pedem mudança no texto da Convenção de Haia

Por se negar a fazer o aborto, a brasileira diz que começou a ser agredida física e psicologicamente pelo ex-namorado. Essas agressões, conforme seu relato, foram se intensificando, com situações de cárcere privado até o fim da gravidez. “Um dia, enquanto amamentava minha filha, ele disse que eu iria deixar o bebê ‘viciado’ em mim e atirou uma lata de leite em pó na minha cabeça”, conta, abalada.

Ela conta que o ex-companheiro chegou a ser preso preventivamente, por 48h, em junho de 2014, por conta das agressões. “Ele entregou meu passaporte e o de minha filha para que eu não prosseguisse contra ele na Justiça. Foi assim que voltei ao Brasil”, conta. Depois de dois anos, entretanto, a Justiça brasileira determinou que a menina, que nessa época tinha três anos, voltasse para a Europa.

“É preciso que esteja escrita na Convenção de Haia que a violência doméstica contraria a premissa de que o melhor para a criança é seu retorno imediato para o país onde ela habitava. Uma frase simples que mudaria vidas”, diz Renata.

Convenção de Haia 

Damaris Rodrigues aguarda a decisão final pela guarda da filha, de 7 anos, que hoje vive na Coreia do Sul após ser levada pelo pai da criança. A ida da menina para lá aconteceu, quando a criança tinha 5 anos, sem permissão da mãe, o que vai de encontro à Convenção de Haia, de acordo com a defesa de Damaris . 

Ela já havia conseguido uma decisão numa Vara de Família da Comarca de Caucaia, no Ceará, estado brasileiro onde a filha dela nasceu. A decisão foi em favor da guarda da mãe. Mas, o caso também está em tramitação na Coreia. Damaris vendeu um terreno e conseguiu doações para ir até as audiências no exterior. Em setembro deste ano, a Justiça coreana determinou o retorno da criança ao Brasil, mas a criança ainda não foi liberada. “A demora da justiça daqui para agir aqui foi tão grande que fez com que a criança permanecesse quase um ano na Coreia do Sul de forma irregular com o pai, que estava com o passaporte cassado pelo Ministério Público Federal. E mesmo assim ele viajou para o exterior e ainda está com prisão preventiva em aberto”, conta Damaris.

Ela diz que seu relacionamento com o ex-marido foi marcado por violência. “Um dia ele começou a me bater e jogou álcool no meu corpo enquanto eu carregava nossa filha. Sai correndo do apartamento porque o vi riscando um fósforo. Mas, o porteiro falou para que voltasse porque meu companheiro não iria fazer nada comigo. Morrendo de vergonha, voltei. Quando entrei no apartamento, levei uma facada na perna e só vi o sangue escorrendo. Ele ainda tentou me acertar novamente pelas costas, mas por sorte não me feriu”. 

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Trecho de decisão do MPCE

Damaris conta que o agressor chegou a ser preso, mas foi solto no mesmo dia por pagamento de fiança. “Em 2018, ele entrou com um pedido de guarda e conseguiu ganhar. A alegação foi a alienação parental. Recorri da sentença, mas nessa mesma época fui morar no Sul do Brasil por causa de uma oportunidade de trabalho e não dava para ir ver minha filha no Nordeste aos fins de semana, conforme estipulado pela justiça”, conta. 

Damaris conseguiu na Justiça brasileira ter a guarda unilateral da filha. Mas o marido viajou com ela para a Coreia do Sul sem autorização da mãe. Ela acionou a Convenção de Haia para reaver a guarda da menina e aguarda o julgamento final, previsto ainda para este ano. “Ele fez uma chamada de vídeo pedindo um documento da minha filha para que pudesse passar uns dias de férias com ele. Disse que não daria o passaporte e que não autorizava. Ao desligar o telefone, liguei para a babá e falei para que ela não desse a ele o passaporte da minha filha (no documento havia uma permissão para que ambos pudessem viajar com a criança tanto no Brasil quanto no exterior), mas a mulher já havia entregado. Dias depois, ele ligou dizendo que estava com minha filha na Coreia do Sul”. 

Procurado pela Interpol 

A Justiça brasileira pede que Ahmed Tarek Mohamed Faiz Abdelkalek entre para difusão vermelha da Interpol, uma lista pública de cooperação internacional que facilita a localização de procurados pela Justiça para extradição. Ele é acusado de ter sequestrado o filho, na época com 3 anos, há mais de um ano. Ahmed deixou o Brasil com a criança rumo ao Egito sem o consentimento da mãe brasileira Karin Aranha. 

Karin Aranha foi ao Egito para conhecer um homem apresentado por um amigo dela e a primeira impressão foi a melhor possível. Ela conta que namoraram escondido da família dele e quando ela resolveu voltar ao Brasil, ele pediu para vir junto porque no Egito não tinham muitas oportunidades de trabalho. “Ele voltou comigo e, aqui, logo descobri que estava grávida. Foi um susto para ele, que é 16 anos mais novo que eu, uma mulher mais madura e que já tinha um filho de outro casamento”, conta. 

No sétimo mês de gravidez, o namorado de Karin disse que não queria que o filho fosse brasileiro e sim que nascesse nos Estados Unidos. Ele preparou tudo para que ela ficasse no apartamento de um egípcio e de uma russa, amigos dele que moravam em Nova York. Karin passou pelo parto de alto risco (criança nasceu prematura) sozinha porque o namorado tinha ficado no Brasil, aguardando a resposta ao pedido de nacionalidade brasileira.

“Quando meu filho tinha dois meses, nós começamos a discutir e foi a primeira vez que ele me deu um tapa na cara. Foi a primeira agressão. No dia seguinte, ele trazia bombons e dizia que eu quem estava exaltada. Era sempre assim: morde e assopra”, conta.

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Trecho do Inquérito Policial

Um tempo depois, segundo Karin, ele deu um chute que deixou marcas intensas nas duas pernas dela. “Na terceira vez, fiz um boletim de ocorrência, que não adiantou nada. Não houve medida protetiva, nem nada”. Por dificuldades financeiras, o casal decidiu que Karin iria trabalhar como faxineira na Inglaterra. “Foi um ano fora do Brasil. Eu falava com meus filhos por videoconferência todos os dias, além de mandar dinheiro de duas a três vezes por semana. Tenho tudo registrado no processo.  

Quando Karin voltou da Inglaterra esperava encontrar o companheiro e o filho no aeroporto para buscá-la. Mas, ninguém apareceu. “Liguei para meu filho mais velho, na época com uns 17 anos, e ele foi até o apartamento e encontrou o imóvel completamente destruído, janelas quebradas, seringas de anabolizantes para todos os lados, muita destruição. O guarda-roupas estava vazio. Não havia nem as roupas do meu namorado, nem do nosso filho pequeno. Os documentos da criança também não estavam lá”, conta.  

Desesperada, ela prestou queixa na delegacia sobre o desaparecimento da criança. “Dias depois recebi uma ligação do pai do meu filho dizendo que ele já estava com o menino no Egito. Aí puxei todas as informações na polícia e descobri que ele já tinha até a cidadania brasileira. Mas, como conseguiu tirar meu filho do país de avião, sem a minha autorização, já que o passaporte do meu filho estava vencido? Foi aí que um policial descobriu que ele saiu do Brasil por terra, pela fronteira com o Paraguai e foi fazendo uma série de percursos até chegar no Egito.”  

Karin conta que embora o filho tenha sido sequestrado, ele não pode ser repatriado para o Brasil aplicando a Convenção de Haia como argumento, uma vez que o Egito não é signatário. Em 1º de dezembro de 2022, ela conseguiu, na justiça em Valinhos, interior de São Paulo, uma decisão que garante a guarda provisória de seu filho. Mas essa decisão ainda não foi cumprida porque o pai está incomunicável e é considerado fugitivo pela Justiça. 

A Agência Pública pediu respostas ao Governo Federal, por meio da Advocacia-Geral da União (AGU) e da ACAF sobre os casos narrados pelas pessoas ouvidas pela reportagem.  

A AGU informou que “a alegação de risco físico ou psíquico ou situação intolerável a que se refere o artigo, 13, 1, b, da Convenção da Haia, passa por possível comprovação durante a ação de busca, apreensão e restituição de menor perante o Poder Judiciário brasileiro, sendo de praxe a avaliação psicossocial do menor, a fim de verificar a presença da exceção. Assim, compete ao Judiciário brasileiro determinar se houve ou não violência doméstica ou outra situação que excepcione o retorno do menor”.

A AGU reconheceu que “a violência doméstica contra a mulher, notadamente no contexto migratório, é algo grave e deve ser combatido”. De acordo com o órgão, no entanto, “para que haja o impedimento ao retorno, é necessário que a violência esteja comprovada, avaliando-se, no caso concreto, se o retorno irá impactar a criança à luz do acervo fático-probatório.”

Sobre o caso de Renata, a ACAF informou que “com o retorno da criança à Europa, o país onde a criança reside entende que é o competente para tratar da guarda da menor. A decisão brasileira somente será válida no país onde a criança está se houver o devido reconhecimento da decisão brasileira naquele território. As medidas que devem ser adotadas para isso dependem exclusivamente da genitora”.

Com relação ao caso da filha de Damaris Rodrigues, que se encontra na Coreia do Sul, com o pai e sem a autorização da mãe, a AGU disse que “não atua em casos de crianças levadas do Brasil para o exterior”. A ACAF não respondeu os questionamentos da reportagem sobre este caso. 

Fonte: Via apublica.org

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