Autores: Rubens Valente.
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Quando foi assassinado brutalmente ao lado do jornalista Dom Phillips no rio Itaquaí, no Amazonas, há pouco mais de um ano, o indigenista Bruno Pereira portava apenas uma pistola adquirida com recursos próprios. Os assassinos sabiam disso porque puderam observá-lo tanto na ida quanto na volta, quando enfim se aproximaram do barco do indigenista e o atingiram de surpresa, pelas costas. Eles sabiam também que os funcionários da Funai não costumavam andar armados e só raramente alguns, por sua conta e risco, buscavam se proteger, mas somente com armas curtas, que não são páreos para as armas que os assassinos costumam usar, como espingardas para caçar animais a certa distância.
Para obter o porte de sua arma, Bruno Pereira havia cumprido por conta própria todo o rito burocrático como se fosse um cidadão comum morando num centro urbano, e não um servidor público federal que atuava numa região onde sua vida corria grande perigo – inclusive porque a Funai do governo Bolsonaro o havia expulsado de um cargo em Brasília, em 2019, logo depois que ele organizou uma operação de repressão a crimes ambientais na Terra Indígena Yanomami.
Que os seus colegas pudessem ter o direito de se armar em autodefesa na crescente onda de atividades do crime organizado em áreas recônditas na Amazônia era uma das grandes preocupações de Bruno nos dias que antecederam seu assassinato. Ele chegou a enviar áudios pelo WhatsApp a um colega da Funai explicando tudo o que ele deveria fazer para obter o próprio porte de arma. Junto enviou fotografias de um treinamento que estava tendo num clube de tiro em Manaus (AM) com uma espingarda que também já havia adquirido.
Seis meses depois da posse do novo governo federal, da criação de um inédito Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e de uma espécie de refundação da Funai com o nome de Fundação Nacional dos Povos Indígenas, a questão do porte de arma por servidores do órgão permanece sem solução. Servidores e indigenistas lembram que o poder de polícia já foi garantido à Funai pela lei que criou o órgão lá em 1967 (item VII do artigo 1º: “exercitar o poder de polícia nas áreas reservadas e nas matérias atinentes à proteção do índio”), bastando apenas uma regulamentação a ser feita pelo próprio Executivo, sem a necessidade de passar pelo Legislativo. Durante o governo de Bolsonaro, enquanto caçadores supostamente “amadores” tiveram seu poder de fogo enormemente ampliado, os servidores da Funai nunca tiveram apoio institucional para o uso de armas. Era cada um por si.
Esse tópico é apenas um exemplo de decisões que o governo federal já poderia ter feito sem maior demora ou grandes gastos (obviamente, nem todos os servidores da Funai poderiam andar armados, apenas estritamente os que estivessem em atividades de campo), e não fez até o momento.
O novo governo já reverteu muita coisa, muitas mudanças já foram feitas, e começam a dar resultados meses depois de implementadas, como a contínua queda dos números do desmatamento na Amazônia. Ou a retirada, ainda que não total, dos garimpeiros da Terra Yanomami. Mas há outras medidas, sim, que aguardam apenas uma canetada para se tornar passado. São providências que o governo precisa tomar a fim de reorganizar o Estado que foi calculadamente desmontado pelo governo de Bolsonaro, em especial nas áreas dos povos indígenas e do meio ambiente.
A possibilidade de os servidores da Funai se armarem como autodefesa é um exemplo. Outro, ainda no campo dos direitos indígenas, é a revogação de um parecer emitido pela Advocacia-Geral da União (AGU) em julho de 2017, ainda no governo de Michel Temer, de número 01, devidamente apelidado de “parecer antidemarcação” ou “parecer do genocídio”. É uma orientação legal da AGU para todos os processos administrativos que tramitam no Executivo federal com relação à demarcação de terras indígenas. Ela é bizarra porque foi confeccionada antes da própria decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), cujo plenário está julgando o mérito do assunto há mais de três anos sem solução final (até agora há dois votos contrários à tese abraçada pela AGU e um favorável).
Na prática, o parecer funciona como a adoção administrativa da tese jurídica do “marco temporal”, muito embora, como todos a essa altura já devem saber, nunca houve uma decisão definitiva ou de efeito vinculante por parte do STF. No tribunal, ao longo dos anos, já houve decisões divergentes, tanto contrárias quanto favoráveis à tese. Alheia a tudo isso, porém, a AGU finge que há um entendimento jurídico definitivo e de efeito vinculante e por isso emitiu o parecer em 2017.
Há duas semanas, como parte das atividades que marcaram o primeiro ano do assassinato de Bruno e Dom, ocorrido em 5 de junho de 2022, um grupo de organizações indígenas esteve na sede da AGU, em Brasília, para novamente cobrar a revogação do parecer 01/2017, a exemplo do que já fora solicitado ao novo governo, em maio, pelo Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH). Perplexas, as entidades ouviram como resposta que o governo não havia revogado o parecer até então a fim de não ser mal interpretado pelo STF naquele momento de retomada do julgamento do caso, como se a revogação pudesse ser entendida como uma pressão indireta sobre os ministros do tribunal. Enquanto isso, um projeto genocida de criação de um “marco temporal” passou a jato no plenário da Câmara dos Deputados.
Uma terceira medida ao alcance do governo é a retomada da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), formada por familiares de vítimas da ditadura militar, criada em 1995 e extinta no final do governo Bolsonaro. Conforme a Agência Pública divulgou em março, o ministro de Direitos Humanos, Silvio Almeida, recebeu em reunião com familiares o pedido da retomada da comissão. Na semana seguinte, o presidente Lula disse aos jornalistas que aguardava de Almeida um “decreto consistente” a fim de recriar a comissão. Mas o tempo passou e nada de a nova comissão ser anunciada. Há três meses a Pública solicita uma entrevista com Almeida para que ele esclareça esse e outros assuntos, mas nunca houve resposta. É um silêncio retumbante.
Na página da CEMDP na internet, sua presidência e composição permanecem espaços vazios. Além da reinstalação da CEMDP, a Comissão Camponesa da Verdade (CCV), criada em 2012 por diversas organizações não governamentais, como a Contag, a CPT, o MA e o MST, solicitou ao ministério a revisão da lei que criou a CEMDP (nº 9.140/95) a fim de “reabrir o prazo para requerimentos dos familiares de mortos e desaparecidos, inclusive camponeses e indígenas”, e explicitar esses dois grupos como “elegíveis aos direitos” que a lei concedeu “por ação ou por omissão dos agentes do Estado”.
São três tópicos – regulamentar o poder de polícia dos servidores da Funai, revogar o parecer da AGU e retomar a CEMDP – que exigem respostas urgentes. Na proteção do Vale do Javari, por exemplo, as ameaças de morte continuam, falta tudo e “nada mudou” desde a morte de Bruno e Dom, como disse à Pública o coordenador da principal organização da terra indígena, a Univaja, Bushe Matís. São temas que apenas superficialmente parecem laterais, mas que têm profunda repercussão na vida dos povos indígenas, no futuro da Amazônia e, de novo, num reencontro do Brasil com o passado criminoso, violento e ilegal da ditadura militar.
Fonte: Via apublica.org