RIO DE JANEIRO, RJ, E SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Apesar do avanço das discussões sobre a divisão das tarefas do lar nos últimos anos, os afazeres domésticos ainda recaem em larga escala sobre as mulheres e afastam do mercado de trabalho principalmente as mães com mais filhos.
No quarto trimestre de 2022, de um total de 1,9 milhão de mães com três filhos ou mais, 40,69% (quase 798,2 mil) estavam fora da força de trabalho por terem de cuidar dos afazeres domésticos, dos filhos ou de outros dependentes.
É o maior percentual para o período de outubro a dezembro em seis anos. Ou seja, desde 2016.
Enquanto isso, somente 0,62% dos homens em casais com três ou mais filhos (o equivalente a 11,9 mil) estavam fora da força de trabalho em razão dos afazeres domésticos ou do cuidado dos dependentes no quarto trimestre de 2022.
Trata-se do maior percentual para o período de outubro a dezembro desde o início da série histórica, em 2012, mas o abismo em relação às mães persiste.
É o que indica um levantamento do laboratório de estudos PUCRS DataSocial a partir de microdados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
A análise abrange homens e mulheres de 25 a 50 anos que fazem parte de casais heterossexuais com ou sem filhos de 0 a 15 anos.
A população fora da força de trabalho é composta por profissionais que não estão empregados nem procurando oportunidades no setor formal ou informal.
Segundo o levantamento do PUCRS DataSocial, as diferenças também são marcantes entre os casais com menos filhos.
Entre as mulheres com dois filhos de 0 a 15 anos, o percentual fora da força em razão dos afazeres domésticos ou do cuidado de dependentes alcançou 28,83% no quarto trimestre de 2022. É o maior patamar desde 2016.
Entre os homens com dois filhos, a marca foi de apenas 0,45% nos três meses finais de 2022. Ainda assim, é a maior da série para o quarto trimestre.
No recorte dos casais com um filho de 0 a 15 anos, o percentual de mães fora da força por motivos domésticos foi de 21,89%, o maior desde 2020. Entre os homens com um filho, a marca foi de 0,55%, o maior da série.
André Salata, pesquisador do PUCRS DataSocial e um dos responsáveis pelo levantamento, destaca que a parcela das mães fora da força vinha caindo antes da pandemia de Covid-19. Com a crise sanitária, que paralisou escolas e empresas, esse grupo voltou a subir.
“É um dado bastante chocante. Apesar de algumas mudanças que estamos acompanhando na sociedade, e que são muito positivas, ainda há uma divisão de gênero muito forte. Os resultados expressam isso”, afirma Salata.
Entre os casais sem filhos, o percentual de mulheres fora da força devido a afazeres domésticos ou cuidado de dependentes foi de 14,87% no quarto trimestre de 2022. A proporção entre os homens foi de 0,47%.
O levantamento ainda traz dados sobre mães e pais fora da força de trabalho por motivos diversos, que vão além dos afazeres domésticos e do cuidado de dependentes. As diferenças seguem intensas.
Nesse recorte, o percentual de mulheres que faziam parte de casais com pelo menos três filhos e que estavam fora da força de trabalho no quarto trimestre de 2022 foi de 50,05%. Entre os homens com três filhos ou mais, a proporção foi de 6,16%.
Em casais com dois filhos, o percentual fora da força por motivos diversos foi de 35,88% para as mães e de 4,87% para os pais no quarto trimestre de 2022.
Em casais com um filho, a porcentagem baixava para 30,18% entre elas e 4,72% entre eles. Nos casais sem filhos, a parcela era de 27,41% e de 6,15%, respectivamente.
Para Ely José de Mattos, pesquisador do PUCRS DataSocial e um dos responsáveis pelo levantamento, os dados mostram que a desigualdade de inserção no mercado de trabalho tem caráter estrutural.
Na visão de Mattos, o combate a essa disparidade depende de ações de longo prazo. De maneira mais imediata, uma medida recomendada seria a ampliação da licença para os pais após o nascimento dos filhos, diz o pesquisador.
A iniciativa buscaria equilibrar os afazeres do lar, mas não resolveria por si só os problemas, segundo Mattos. “É algo estrutural. Precisa ser pensado para o longo prazo.”
Salata vai na mesma linha. Para ele, uma “melhora substantiva” passa por “mudanças geracionais”, que não acontecem do dia para a noite.
“O governo não pode simplesmente dar uma canetada e obrigar as pessoas a seguirem determinado estilo de vida, mas existem medidas importantes que podem ser adotadas, como a licença paternidade de maior fôlego”, afirma Salata.
“Expandir a rede de creches e escolas em tempo integral é uma ação que também poderia ser adotada para tornar a situação melhor”, acrescenta.
Plataforma tenta ajudar
Enquanto o país não assiste a uma mudança profunda nessas relaçõ es, há iniciativas que buscam mitigar a desigualdade de oportunidades.
É o caso do projeto da empreendedora Renata Lino, 41, que criou a plataforma de empregos para mães MommyTech.
A startup firma parcerias com empresas interessadas em promover diversidade e recebe currículos de mães e mulheres grávidas. “Temos uma base de dados com [20 mil] mães típicas e atípicas –100% de mulheres”, diz Renata.
A plataforma filtra essas informações a partir do perfil buscado pela empresa e das preferências das mães e gestantes, para fazer uma pré-triagem.
A startup ajudou mais de 675 mães a se recolocarem de forma direta e indireta no mercado de trabalho, de acordo com a fundadora.
“Contamos como vagas indiretas os casos das mães que receberam consultoria da MommyTech para se aprimorar em habilidades desejadas pelo mercado ou tornar o currículo mais atraente”, diz.
A profissional de marketing digital Karin Hetschko, 40, conseguiu se recolocar após manter conversas com Renata e ter seu currículo enviado pela MommyTech à startup Racoon, recentemente adquirida pela multinacional Media Monks.
Karin ficou cinco meses sem trabalho após ser demitida de uma empresa estrangeira de desenvolvimento de software em março de 2022. Ela era mãe de uma criança de pouco mais de um ano.
Reclamações sobre o tempo que Karin gastava com o filho se somaram a uma gestão via emails enviados pelo chefe, diz a profissional. Karin afirma que queixas sobre atrasos salariais para sua equipe foram o estopim para a demissão.
Desde então, ela passou a informar que era mãe nas entrevistas de emprego, mesmo quando não era questionada sobre o tema.
“Não me perguntaram na minha antiga empresa, e percebi que foi um erro não deixar isso claro na relação, embora não seja uma estratégia indicada por especialistas em carreira.”
O emprego na Racoon como supervisora de uma equipe de desenvolvedores veio na sétima entrevista. Desde essa contratação, Karin trabalha de forma remota, o que amplia o tempo dedicado ao cuidado com a família, segundo ela.
Para Renata, a licença parental independente de gênero é a única forma de colocar homens e mulheres em condições iguais ante os empregadores e gestores.
A fundadora da MommyTech diz que, até hoje, não conseguiu emprego para mulheres grávidas. “É um estigma muito grande.”
Autor(es): LEONARDO VIECELI E PEDRO S. TEIXEIRA / FOLHAPRESS