Autores: Natalia Viana.
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Começamos 2024 sob a pesada sombra de uma tentativa de golpe de Estado que ocorreu há exato um ano e que impõe a pergunta inescapável a este governo, mas não só, pois com ela se defronta toda sociedade que passou por um evento traumático como o 8 de janeiro: qual é o lugar que se deve dar à memória?
Por ora, um ato oficial, ao qual atendeu mais de 500 autoridades, incluindo os chefes dos três poderes e das Forças Armadas, na tarde de segunda-feira (8) no Senado Federal, foi o ápice de um esforço ainda tímido para superar nossa tentação eterna ao “deixa pra lá” nacional – esforço esse que encontrou resistências no próprio governo, resmungos entre os generais e até um manifesto da oposição, assinado por 30 senadores que criticam “abuso de poderes” do STF, penas “abusivas” àqueles que sabiam estar servindo de bucha de canhão para um golpe, e ainda pedem “a volta à normalidade democrática”, ou seja, que voltemos a ser o maravilhoso país das anistias.
Não que tenhamos avançado muito: até agora, foram 30 os condenados pelos atos, sendo que nenhum dos financiadores e, em especial, nenhum dos generais que se engajaram na conspiração golpista chegou a ser punido – e nem devem ser, pois não há notícia de investigação sobre a “omissão e ação” dos fardados que enfiaram as Forças Armadas na tramoia bolsonarista, como bem colocou o professor Francisco Teixeira em entrevista à Agência Pública divulgada no último domingo.
A cerimônia, então, nos deixa no meio do caminho, por marcar a data, mas estar longe de ser uma resposta da sociedade à altura da gravidade do que ocorreu.
Se o peso é pequeno nessa nossa efeméride, é ainda menor no dia a dia de Brasília. Como mostramos em outra reportagem, apenas o Judiciário, entre os três poderes atacados, mantém um tour que rememora aquelas horas tenebrosas.
A memória faz parte da visita pública conduzida no prédio do STF a cidadãos interessados, aquela mesma pela qual passam milhões de adolescentes do ensino médio – como essa que vos escreve fez na sua época –, turistas, curiosos de todo tipo. Agora, a visita oficial tem um “ponto de memória” com imagens da invasão. Mas não só isso; segundo nossa repórter Laura Scofield, as lembranças estão por toda parte – seja no prédio, seja nas peças danificadas, guardadas com zelo, seja nos relatos dos guias. O objetivo é que “esse dia não caia no esquecimento”.
Eu me pergunto por que somos uma nação que esquece tão rápido. Afinal, os ecos daquele dia histórico reverberam, ainda, dentro daqueles que sabiam que o que estava em jogo era o destino do nosso país. Como o coronel da PM que enquadrou os militares do Batalhão da Guarda Presidencial que faziam corpo mole diante da invasão do Palácio do Planalto. Como o ex-ministro da Justiça Flávio Dino, que foi cobrar a prisão dos golpistas no acampamento e viu, consternado, que o comandante do Exército, muito pelo contrário, havia dado ordens para um embate com a polícia do DF.
“Quando me viro, vejo a polícia do Exército em formação, duas ou três linhas, mas não de frente para o acampamento, de frente para a PM. E eu vi também uns blindados do Exército se locomovendo, saindo de vias e se agrupando ali com soldados aparatados como se fossem para um combate”, disse ele aos jornalistas Julia Duailibi e Rafael Norton para o documentário 8/1: A Democracia Resiste, da Globonews.
Mas não falo só daqueles poucos nomes que ficaram reconhecidos e deram entrevistas para jornais. Há muitos outros brasileiros que se colocaram na linha de frente naquele dia, bem como nos dias e meses turbulentos que o antecederam.
Como o grupo de estudiosos da defesa e assuntos militares que, segundo o professor Francisco Teixeira me contou, buscou abrir canais de comunicação com deputados petistas que estavam na comitiva de Lula em São Paulo e com secretários do Ministério da Justiça para alertar sobre o risco institucional que se correria ao chamar uma Operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Com a autoridade de quem há décadas estuda a história militar e acompanha de perto as relações civis-militares, Teixeira resume o que foi passado às autoridades: “Na verdade, se tinha já até preparado o nome de um general para assumir o controle. E assumindo o controle, a devolução desse poder à República não seria fácil”.
Na nossa conversa, o mesmo Francisco fez questão de relembrar que pelo menos cinco militares do Alto-Comando resistiram a pressões enormes dentro e fora da caserna para aderirem à tese golpista – foram xingados e achincalhados por familiares, conhecidos, ex-colegas, nas redes sociais, para dizer só o que se sabe – entre eles, general Richard Nunes, chefe do Departamento de Educação e Cultura do Exército, o atual comandante, o general Tomás, e o general André Luiz Novaes, chefe do Comando de Operações Terrestres (Coter).
“Eles colocaram em risco a carreira deles, expuseram-se, colocaram-se como um freio ao golpe, mas o governo Lula não reconheceu isso”, diz o professor.
Mas penso também em tantos outros que se articularam como puderam para resistir à violência discursiva do bolsonarismo que ameaçava varrer do mapa um resultado eleitoral absolutamente legítimo. Conversei há algumas semanas com um servidor federal lotado no TSE que me contou, ainda emotivo pela lembrança, que no segundo turno foi trabalhar munido de duas pistolas sob a roupa, pois sabia que naquele dia o prédio poderia ser alvo de uma investida violenta por parte dos truculentos bolsonaristas que já avisavam havia meses que não aceitariam derrota e já planejavam manifestações e bloqueios de estradas desde muito antes da votação, como mostramos na Pública.
Quero saber dos funcionários do TSE que trabalharam no combate às incansáveis ondas de desinformação sobre as urnas eletrônicas, dos agentes de segurança que tentaram alertar o governo e seus superiores sobre o risco iminente, dos militares de quartéis que pediram a desmobilização dos acampamentos e alertaram sobre o perigo que se corria. Quero saber dos assessores do STF que enviaram recados para diversos setores da sociedade de que não haveria golpe, e dos membros do Itamaraty que buscaram acalmar os diplomatas estrangeiros. Quero saber dos funcionários de limpeza e manutenção que, com fervor, trabalharam para limpar os resquícios nojentos daquele grito anticivilizatório e gutural. Quero saber daqueles que ficaram do lado do Brasil.
Na verdade, a resistência ao 8 de janeiro nasceu assim que começaram os intentos de Jair Bolsonaro para criar as condições para um golpe de Estado. E se houve um montão de oportunistas que demonstraram que abririam mão da democracia, também é verdade que outro exército silencioso de gente, muitos deles servidores federais, lutou com as armas de que dispunha para refrear essa onda golpista.
São pessoas como o delegado Mario de Marco Rodrigues de Souza, da Receita Federal (aquele das joias), que resistiram durante quatro anos aos abusos de poder do ex-presidente, quando ele e seus asseclas buscaram contorcer os órgãos que cuidavam de direitos dos cidadãos para benefício próprio, corroendo por dentro nosso jovem e tão imperfeito Estado Democrático de Direito. Penso ainda nos servidores da Funai, perseguidos e colocados pelos bolsonaristas naquela “lista vermelha” que os marcava como “contra o governo” por apenas fazerem seu trabalho de defender os indígenas – fato que também nós, na Pública, denunciamos.
Eis o reverso da tendência nacional ao esquecimento rápido e à reconciliação forçada: deixamos muitas vezes de dar o devido lugar àqueles que estavam do lado certo da História. E sabemos que uma nação nova, uma que se nega a esquecer a violência política que tudo corrói e a correr a anistiar crimes de Estado, não se constrói apenas com apontar os vilões. É preciso, também, reconhecer que tivemos, e temos, tantos heróis.
Fonte: Via apublica.org