Autores: Marina Amaral.
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Quase cinco anos depois de mais de duas centenas de pessoas terem sido afogadas por um mar de lama com o rompimento de uma barragem da Vale em Brumadinho, ninguém foi responsabilizado pelas mortes. Nenhum dos 16 réus apontados pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) foi a julgamento. Ainda há três pessoas desaparecidas e a bacia do rio Paraopeba segue poluída, afetando comunidades e cidades na região.
A denúncia do MPMG que deu início à ação penal em 2019, transferida para a Justiça Federal em 2022 a pedido dos réus, o que atrasou todo o processo, apontou como réus pelos homicídios dolosos (qualificados) 11 funcionários da Vale – entre eles o seu então presidente, Fábio Schvartsman – e cinco funcionários da Tuv-Sud (empresa que fez a perícia atestando a “estabilidade” da barragem que causou a catástrofe de 25 de janeiro de 2019).
Para o MPMG – e também para o Ministério Público Federal (MPF), que assumiu a ação com a federalização e ratificou a denúncia –, “era previsível, calculado, conhecido e assumido pela equipe da VALE e da TÜV SÜD o risco proibido de uma abrupta ruptura da Barragem I, com o violento deslocamento de toneladas de lama em alta velocidade para impactar as estruturas administrativas em poucos segundos e a comunicante jusante rapidamente”. Cerca de 600 pessoas trabalhavam na área que seria imediatamente afetada e há pelo menos dois anos a companhia tinha ciência das más condições da barragem que rompeu, segundo o MP.
E mais: “a VALE ocultou e dissimulou do Poder Público e da sociedade, de forma sistemática e permanente, informações importantes sobre a situação de (in)segurança de diversas de suas barragens […] para evitar impactos reputacionais negativos de curto prazo e permitir omissões penalmente relevantes quanto a medidas de transparência, emergência e segurança”.
Ou seja, quando o ex-presidente da Vale veio a público, em um evento para investidores do Itaú, em fevereiro de 2018, garantir que “as barragens estão impecáveis”, sem tomar nenhuma providência para proteger seus funcionários, ele sabia o que estava fazendo. Isso três anos depois da tragédia em Mariana, também de responsabilidade da companhia.
Nas palavras do MP: “Na divisão de tarefas para a dinâmica fática que levou ao crime humanitário e ambiental, o presidente FÁBIO SCHVARTSMAN ocupou posição de comando que orientou todo o ambiente corporativo, voltado para manter a qualquer custo a reputação da VALE”. E conclui: “Assim agindo, o denunciado assumiu o risco de produzir os resultados – mortes e danos ambientais — advindos do rompimento da Barragem I da Mina Córrego do Feijão, contribuindo decisivamente para que tais resultados ocorressem da forma e na proporção como ocorreram”.
Pois bem. Na quarta-feira passada, a Segunda Turma do TRF-6 começou a julgar um habeas corpus (HC) impetrado pela defesa do ex-presidente da Vale pedindo, simplesmente, o trancamento da ação penal. Resumindo os argumentos do HC, afirma-se basicamente que Schvartsman não tinha conhecimento dos riscos e nada teve a ver com o “acidente” que tirou a vida de tantas pessoas, boa parte delas funcionários da própria companhia.
O HC recebeu um voto favorável do relator do caso na mesma quarta-feira (o julgamento foi suspenso por um pedido de vista e deve ser retomado em fevereiro de 2024). Para piorar a história, o recurso foi mantido em sigilo (o processo corre publicamente) até seis horas antes do julgamento, dificultando a estratégia jurídica dos representantes das vítimas e abafando o caso perante a opinião pública.
“Quem não deve não teme. Se ele afirma que não tem responsabilidade no rompimento, não deveria ter medo de ser julgado”, declarou Edi Tavares, diretor da Associação dos Familiares e Atingidos pelo Rompimento da Barragem Mina do Córrego do Feijão (Avabrum), para quem Schvartsman tem todo o direito de se defender, mas não de evitar o julgamento.
A decisão do relator também provocou o estranhamento de procuradores e advogados que atuam como assistentes de acusação, já que “não cabe habeas corpus contra decisão que indefere pedido liminar, salvo em casos de flagrante ilegalidade ou teratologia da decisão impugnada, sob pena de supressão de instância”, de acordo com o parecer do MPF sobre o HC.
Traduzindo para o português, como me explicou Danilo Chammas, advogado da Avabrum: “É muito raro que um HC que pede o trancamento de uma ação seja julgado procedente, a não ser que haja erros grandes, o que não é o caso de uma denúncia extensa apoiada em muitas provas. A jurisprudência é superclara: o HC não se presta para a análise de fatos e provas. O réu tem todo o direito de se defender, mas isso deve ser feito no curso do processo, não suprimindo o julgamento”, disse Chammas.
Desde o início, o processo de Brumadinho vem sofrendo interferências que preocupam não apenas os advogados das vítimas e o MP, mas todos os que conhecem a permeabilidade da Justiça ao poder econômico e a pouca disposição da imprensa para dar publicidade aos meandros de processos judiciais que evidenciam o poder desse tipo de réu.
O silenciamento do debate público é o caminho mais seguro para a impunidade.
Fonte: Via apublica.org