Autores: Anna Beatriz Anjos, Giovana Girardi.
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Cúpula da Amazônia termina sem acordo para zerar desmatamento nem menção ao fim da exploração de petróleo
BELÉM – Uma declaração extensa, mas sem metas concretas, foi o primeiro resultado da Cúpula da Amazônia, iniciada nesta terça-feira (8), em Belém (PA). Em meio a mais de cem decisões, os oito países presentes ao evento se comprometeram de modo genérico a combinar esforços para estabelecer uma nova agenda de cooperação na região. Um dos pilares da Declaração de Belém é adotar uma “ação urgente” para evitar que a maior floresta tropical do mundo, compartilhada por todos eles, atinja o chamado ponto de não retorno.
Cunhado por cientistas, o conceito estima que se o desmatamento do bioma atingir um patamar entre 20% e 25%, a floresta não será mais capaz de se recuperar, perdendo irreversivelmente suas principais características ecológicas.
Não estamos muito longe disso. A Amazônia como um todo já perdeu 17% de sua cobertura original, segundo dados compilados até 2021 e divulgados nesta terça-feira pela plataforma MapBiomas. O total perdido no bioma em todos os países já soma quase 1,25 milhão de km2, quase o equivalente ao tamanho do estado do Pará. O Brasil, que responde por 61,9% do território amazônico, já perdeu 615 mil km2 – ou 21% da cobertura original.
Se o desmatamento continuar avançando e o ponto de não retorno for atingido, fica comprometida a capacidade da floresta de regular o regime de chuvas de diversas regiões do Brasil e de capturar carbono da atmosfera – o que ameaça os esforços globais para combater a crise do clima.
Assinada na presença de quatro presidentes – o brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva (PT), idealizador do evento; Gustavo Petro, da Colômbia; Luis Alberto Arce, da Bolívia; e Dina Boluarte, do Peru –, a Declaração de Belém reconhece que a “cooperação, a visão integrada e a ação coletiva são fundamentais” para enfrentar os desafios impostos à região amazônica, sobretudo os relacionados à “crise do clima, perda de biodiversidade, contaminação da água e dos solos, desmatamento e incêndios florestais”. A outra metade dos chefes de Estado amazônicos (da Venezuela, Equador, Suriname e Guiana) enviou à reunião apenas ministros.
A Agência Pública ouviu especialistas para entender que medidas os países podem tomar e quais os principais desafios a serem enfrentados para tirar do papel a missão de salvar a Amazônia do ponto de não retorno.
Impedir o ponto de não retorno no bioma – intenção que aparece quatro vezes no texto – depende principalmente do combate ao desmatamento. Havia a expectativa de que os oito países se comprometessem a zerá-lo até 2030, objetivo já assumido pelo Brasil, Colômbia, Equador, Suriname e Peru na 26ª Conferência do Clima das Nações Unidas, a COP26, em 2021. Se a Declaração de Belém mencionasse a meta, ela se estenderia também para a Guiana, Venezuela e Bolívia.
O acordo, no entanto, apenas cita que o “ideal” é “alcançar o desmatamento zero na região”, sem transformá-lo em imperativo. Também cria uma aliança amazônica para cooperação entre os países no combate ao desmatamento, que promoverá o cumprimento das metas nacionais já existentes, “inclusive as de desmatamento zero”.
“O planeta está em crise, as pessoas estão morrendo por causa da crise climática. É inundação, seca, recorde de calor. E os países amazônicos não conseguem nem colocar no papel que o desmatamento não vai mais ser tolerado, que eles vão adotar o desmatamento zero como objetivo. É uma distância muito grande da realidade”, avalia Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima.
Para ele, o texto assinado pelos oito países é apenas uma relação de intenções – parece uma “lista de ano novo”, diz –, que depende que as promessas sejam colocadas em prática. “Há países ali com compromissos muito mais avançados do que os determinados pela declaração. Para esses países, a declaração não avançou na posição que eles já tinham”, argumenta.
Tasso Azevedo, engenheiro florestal e coordenador do MapBiomas, defende que apesar de a declaração não trazer metas concretas, o plano de evitar o ponto de não retorno significa, de certo modo, exatamente isso.
No cenário menos otimista (de que essa situação seria atingida a partir de 20% de desmatamento), o bioma não está muito longe disso. E isso considerando toda a Pan-Amazônia, porque algumas áreas da Amazônia brasileira já perderam mais de 20% de sua cobertura original e já tem apresentado alterações que indicam que, ao menos localmente, o ponto de não retorno pode ter começado a ser atingido.
O pesquisador acredita que esse dado pode vir a ser estabelecido rapidamente pela ciência. A declaração de Belém prevê a criação do Painel Intergovernamental Técnico-Científico da Amazônia, no âmbito da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA). Será uma espécie de IPCC (o painel científico de clima da ONU) voltado para avaliar pesquisas sobre a região. “O primeiro relatório deste grupo poderá, por exemplo, definir qual é o ponto de não retorno, quando se dará a ruptura. Ao dizer quanto é, vai trazer indicadores de como não se chegar a isso, e provavelmente vai ser o desmatamento zero”, afirma Azevedo.
Ele aponta que se a tentativa para evitar isso for levada a sério, abre caminhos para inúmeras possibilidades de atuação de modo cooperativo entre todos os países. “É possível pensar na criação de corredores de conservação nas áreas de fronteira, de modo a ter proteção dos dois lados, com vigilância conjunta”, exemplifica. “Também dá para ter atuações conjuntas no cenário oposto. Áreas de fronteira já muito desmatadas poderiam compartilhar estratégias de restauração da vegetação, dos cursos d’água.”
Um terceiro ponto, diz, é o monitoramento em escala regional, não só do desmatamento, mas da exploração da floresta, do movimento de espécies e da água, por exemplo. “Assim como temos parceria de um satélite com a China, poderíamos ter dois, três satélites em conjunto com os países da região só olhando para a Amazônia. São todas coisas que são caras, lentas de serem feitas por um país sozinho. Mas que ganham não só em custo e velocidade, mas em compartilhamento de estratégias, de tecnologia, de estrutura”, complementa.
Cooperação no combate a crimes e fortalecimento da OCTA
Uma das linhas da declaração é atuar conjuntamente também para combater a criminalidade na região. Nos últimos anos, o desmatamento se associou ao crime organizado – garimpeiros, madeireiros, pesca, caça ilegais e narcotráfico – e especialistas há tempos defendem que todos eles precisam ser combatidos de modo integrado.
“As economias ilícitas cruzam fronteiras. A cadeia vai se beneficiando e vai ficando mais complexa à medida que vai avançando nas redes transfronteiriças”, comenta Ilona Szabó, presidente do Instituto Igarapé, focado nas áreas de segurança pública, digital e climática.
Nesse sentido, diz, é uma vitória ver o tema incluído na declaração da cúpula. “Isso era necessário porque os países não podem avançar se não tivessem este mandato”, diz. Mas ela aponta que vai ser preciso avançar bem além do que prevê a declaração.
“É preciso muito mais do que simplesmente colocar a polícia para cooperar. Primeiro, começando mesmo do início, existe um vazio de dados. Os países que são membros da OTCA vão ter que melhorar a produção, a qualidade das informações sobre ilícitos ambientais e sobre a relação desses crimes ambientais com o que a gente chama de crimes conexos ou convergentes”, explica Szabó. É o caso de crimes administrativos, financeiros e de tráfico. “Então, é fundamental que haja um esforço no sentido de primeiro melhorar a produção para que se possa ter uma troca de informações confiáveis.”
Outra dificuldade, explica a pesquisadora, é harmonizar legislações e regulações. “O que é crime em um país não é crime em outro”, comenta.
Já em termos da colaboração entre os países, a principal decisão do acordo é a de fortalecer a OTCA. “Existe um reconhecimento de que não há saída unilateral para a Amazônia. Mesmo que o Brasil consiga cumprir a sua promessa de zerar o desmatamento até 2030, se os demais países que compõem a bacia não fizerem o mesmo, não será possível impedir que a Amazônia atinja o ponto de não retorno”, aponta Maiara Folly, diretora-executiva da Plataforma CIPÓ, instituto de pesquisa especializado em questões de clima, governança e relações internacionais.
“E a OTCA é a única organização internacional que reúne os países amazônicos com o objetivo de promover o desenvolvimento sustentável da região. Por isso, o seu fortalecimento é fundamental para fazer frente à urgência de salvar o bioma amazônico, um processo que precisa ser liderado pelos países da própria região”, afirma.
Criada em 1995, a OTCA funciona com base nas diretrizes do Tratado de Cooperação Amazônica (TCA), assinado em 1978, quando “as prioridades de cooperação regional eram outras”, explica Folly. Agora, de acordo com ela, é necessário preparar a organização para que ela atue à altura dos novos desafios da Amazônia, “como o enfrentamento aos ilícitos transfronteiriços e aos crimes ambientais, como o garimpo ilegal e a extração ilegal de madeira”.
Fim do petróleo na Amazônia ficou apenas na boca de Petro
Durante os Diálogos Amazônicos, eventos que reuniram a sociedade civil por três dias nas vésperas da Cúpula da Amazônia, duas demandas se consolidaram como principais: além do fim do desmatamento na Amazônia, o abandono da exploração de petróleo no bioma. Esta foi a reivindicação de mais 80 organizações pan-americanas em carta encaminhada aos líderes e também um tema recorrente nas falas dos movimentos sociais e ativistas.
No entanto, a Declaração de Belém não traz nenhuma menção a este segundo ponto. Fala apenas em “iniciar um diálogo” entre os países sobre a “sustentabilidade de setores como mineração e hidrocarbonetos” na Amazônia. Na prática, essa linguagem não ataca o principal fator causador do aquecimento do planeta: a emissão de gases de efeito estufa derivada da queima de combustíveis fósseis, como o petróleo.
Entre os quatro presidentes presentes à cúpula, Gustavo Petro, da Colômbia, foi o único a trazer o senso de urgência ao dizer que a vida do planeta depende que se deixe de usar petróleo. Ele havia proposto que o documento trouxesse o compromisso de que não mais houvesse atividade petroleira na Amazônia. A proposta não foi aceita pelos demais governantes.
“Há um enorme conflito ético, sobretudo por forças progressistas, que deveriam estar ao lado da ciência”, disse. “[Os governos de] direita têm um fácil escape, que é o negacionismo. Negam a ciência. Para os progressistas, é muito difícil. Gera então outro tipo de negacionismo: falar em transições”.
O assunto entrou em evidência no Brasil devido aos planos da Petrobras de perfurar poços na bacia sedimentar da Foz do Amazonas, entre o litoral do Amapá e do Pará. Um dos pedidos de licenciamento da estatal foi negado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em maio, o que inaugurou uma crise interna no governo Lula.
Fonte: Via apublica.org