Autores: Giovana Girardi.
Quer receber os textos desta coluna em primeira mão no seu e-mail? Assine a newsletter Antes que seja tarde, enviada às quintas-feiras, 12h. Para receber as próximas edições, inscreva-se aqui.
O brasileiro, em geral, tem uma relação de amor com o calor. Estamos no meio de um feriadão e tudo o que a maioria de nós quer é aproveitar o dia quente, de preferência na praia, na piscina, num parque, num rio. Brincando numa tina d’água, que seja. A gente tende a não achar o calor um problema. Somos um país tropical. Calor é normal pra gente.
Mas e quando não é?
“Ah, Giovana, não venha me falar, justo hoje, que não é pra gostar de calor”, deve estar pensando o caro leitor. Nada… eu até gosto. Quando estou de folga, verdade seja dita, o que não é o caso hoje – mas juro que não estou aqui azarando o seu descanso!
A questão é: e quando não é normal?
A gente teve uma experiência bizarra disso recentemente. Aquela onda de calor que atingiu o Brasil e a América do Sul em setembro, ainda antes mesmo de acabar o inverno, com temperaturas passando de 40ºC em várias partes do país e vários recordes de calor quebrados, não foi normal.
Porque todo o clima já não está mais normal. O calorão de setembro foi pelo menos 100 vezes mais provável de acontecer por causa das mudanças climáticas. Porque nós, humanos, já alteramos o clima de tal maneira que ondas de calor extremo estão muito mais comuns de acontecer do que antes.
Esse cálculo foi divulgado por um grupo de cientistas do Brasil e do exterior no começo desta semana. Eles fizeram uma análise conhecida como “estudo de atribuição”, que busca avaliar a probabilidade de as condições climáticas atuais do planeta – como a enorme quantidade de gás carbônico que está acumulada na atmosfera por causa da nossa queima de combustíveis fósseis, desmatamento e agropecuária – influenciarem ou não a ocorrência de um determinado evento.
A ideia é tentar medir se uma dada ocorrência se deu apenas dentro da variação climática natural do planeta – sim, mesmo sem aquecimento global, eventos extremos acontecem de vez em quando –, ou se ela seria muito improvável de ocorrer se não fosse justamente o estresse extra a que a Terra está sujeita.
E a conclusão foi que as temperaturas do período teriam sido de 1,4ºC a 4,3ºC mais baixas se nós não estivéssemos aquecendo o planeta com nossas emissões de gases de efeito estufa. Se a temperatura média da superfície da Terra continuar subindo, esses eventos ficarão ainda mais comuns e mais quentes.
Com um aquecimento global de 2ºC acima dos níveis pré-industriais, ondas de calor como essa podem ser ainda cinco vezes mais provável de ocorrer do que já foi hoje, e ainda de 1,1ºC a 1,6ºC mais quente. Veja que este ano já tivemos vários meses em que a temperatura média do planeta ficou cerca de 1,5ºC acima da registrada para o período antes da Revolução Industrial. Em setembro ficou 1,75ºC acima. Claro que esse não é um aumento que se sustenta pelo ano inteiro, mas já é bastante preocupante.
Bati um papo rápido com o pesquisador brasileiro Lincoln Alves, do Inpe, que faz parte do World Weather Attribution – o grupo que conduziu o estudo –, e perguntei se ele tinha se surpreendido com os resultados. Alves é membro do IPCC, o painel científico da ONU sobre mudanças climáticas que vem alertando há décadas sobre o problema.
E ele me respondeu com um riso nervoso: “O que nos surpreende é que aquilo que a gente projetava que iria acontecer num horizonte de 30 anos já está acontecendo agora”.
Não é só a onda de calor do Brasil. O mesmo grupo analisou neste ano, por exemplo, os intensos incêndios florestais que atingiram o Canadá, a extrema onda de calor que atingiu a Europa, a América do Norte e a China em julho, e as tempestades que atingiram o Mediterrâneo, em especial a Líbia, em setembro. Todos esses eventos, de acordo com os estudos de atribuição, foram piorados pelas mudanças climáticas.
A ideia de analisar rapidamente o que tinha acabado de acontecer no Brasil foi justamente uma tentativa de mostrar que nada do que está acontecendo é mais normal. “Altas temperaturas fazem parte do cotidiano das pessoas no Brasil e por causa disso não se leva muito em consideração o impacto que o calor tem nas nossas vidas, tanto do ponto de vista ambiental – o calor traz seca, tem impacto na agricultura, nos recursos hídricos –, mas do próprio bem estar das pessoas”, afirma o pesquisador.
Além de que, em geral, esses impactos demoram a ser sentidos. O impacto direto do calorão na saúde, por exemplo, vai para ser contabilizado meses depois. Só em julho de 2023, um ano depois da onda de calor que atingiu a Europa no verão de 2022, saiu um estudo na revista Nature Medicine estimando que mais de 61 mil mortes podem ter morrido em decorrência das altas temperaturas no continente.
O verão de 2022 já tinha sido o mais quente do registro histórico na Europa. O de 2023 o superou. Organizações meteorológicas estimam que este deve ser o ano mais quente desde o início das medições, no fim do século 19.
Os pesquisadores também quiseram analisar a onda de calor brasileira porque este é um ano de ocorrência do El Niño, o fenômeno natural de aquecimento das águas do Pacífico que sempre acaba impactando o clima no Brasil. Muito do que está acontecendo, como a seca e as queimadas no Amazonas e as chuvas no sul do país, se imagina que esteja apenas na conta dele. Mas o estudo considerou que, para a nossa onda de calor, o El Niño pode até ter tido alguma influência, mas o principal motivo foram mesmo as mudanças climáticas.
Isso é importante porque, de novo, não dá mais para olhar um ano de El Niño e imaginar o que vai acontecer apenas com base em como foram anos anteriores em que o fenômeno se manifestou. Em um planeta mais quente, em que atmosfera e oceanos como um todo estão muito mais quentes, o futuro não é mais como era antigamente.
Fonte: Via apublica.org