Autores: Anna Beatriz Anjos.
Índice do Conteúdo
Segundo antropóloga, voz ativa na elaboração do capítulo sobre indígenas, tese que volta a ser julgada hoje é ‘invenção’
Nesta quarta-feira (7), o Supremo Tribunal Federal (STF) retoma o julgamento envolvendo a tese do marco temporal. Defendida pelo agronegócio e combatida pelo movimento indígena, que se mobiliza nesta semana em Brasília contra a medida, o conceito define que só devem ser formalmente reconhecidos pelo Estado brasileiro os territórios que eram ocupados por indígenas na data de promulgação da Constituição, em outubro de 1988.
A Agência Pública conversou com a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, que acompanhou ativamente os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte na construção dos artigos sobre os povos indígenas. O primeiro, de número 231, garante a eles “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.
Este é o cerne da discussão travada no STF, que deve decidir se há limitação temporal a esses direitos. Até agora, são conhecidos os votos do relator do recurso extraordinário em julgamento, ministro Edson Fachin, contrário ao marco temporal, e do ministro Nunes Marques, favorável à tese.
Um dos maiores nomes da antropologia brasileira, professora titular aposentada da Universidade de São Paulo (USP) e emérita da Universidade de Chicago, Carneiro da Cunha afirma que, na época da Constituinte, as forças opostas à efetivação dos direitos territoriais indígenas – sobretudo as mineradoras, de acordo com ela – não utilizavam o argumento do marco temporal para restringir a possibilidade de demarcação dos territórios. “Ninguém falava disso”, relata. Segundo a antropóloga, a tese é uma “invenção” conveniente a quem disputa terras com os indígenas.
Reportagem publicada nesta quarta pelo jornal O Globo mostra que os parlamentares constituintes se preocuparam com a questão e agiram justamente para preservar os direitos de comunidades indígenas expulsas de suas terras. Por esse motivo, muitas delas não ocupavam seus territórios tradicionais na data em que entrou em vigor a Constituição, e com uma eventual aprovação do marco temporal, podem perder a garantia à posse das áreas.
O então senador Jarbas Passarinho, ex-ministro dos governos da ditadura militar, sugeriu a alteração e retirada de artigos que abriam margem para essa interpretação. “A expressão ‘posse imemorial’ (…) poderá ensejar a expulsão ou perda do direito à terra pelas comunidades indígenas, inclusive prejudicando irreversivelmente aquelas já vitimadas por processos de transferência forçada”, escreveu na justificativa da emenda que propôs a um artigo, conforme descreve O Globo.
Na entrevista à Pública, Carneiro da Cunha ainda critica o parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU), aprovado pelo então presidente Michel Temer, que define que o marco temporal deve ser reconhecido como regra para a demarcação de todas as terras indígenas do país – algo que já havia sido negado pelo STF em 2013. Embora especialistas e entidades indígenas peçam a revogação do parecer, ele segue válido. Leia a seguir os principais trechos.
De que forma a tese do marco temporal contraria a garantia constitucional dos direitos originários dos povos indígenas sobre seus territórios, que é um dos argumentos do ministro Edson Fachin em seu voto?
Isso o Supremo vai ter que dizer. O grande constitucionalista José Afonso da Silva [professor titular aposentado da Universidade de São Paulo, que elaborou parecer jurídico refutando o conceito jurídico do marco temporal] defende que o que prevalece é o direito originário, e que portanto não há nenhuma data ali colocada [como limite para as demarcações]. A meu ver – vamos ver o que o Supremo vai decidir – é uma tese que não se sustenta.
O marco temporal era uma discussão na época da Constituinte?
Nunca tinha visto nada parecido. A Constituinte foi em 1987 e 88. Essa ideia começou a circular um pouco antes de 2009 [quando terminou o julgamento sobre a Terra Indígena Serra do Sol]. Talvez já estivesse circulando como uma ideia astuta, mas não na época da Constituinte.
Não era um argumento que precisava ser combatido pelos atores favoráveis à garantia dos direitos territoriais indígenas?
Não, não. Ninguém falava disso.
Acredita que a discussão da tese do marco temporal como existe hoje nasceu juridicamente, então, no julgamento sobre a Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol, finalizado em 2009?
O marco temporal foi inventado. É uma invenção que devemos ao ministro Menezes Direito no caso da Raposa Serra do Sol em 2009 [o ex-ministro do STF que, em seu voto no julgamento, delimitou a demarcação contínua da TI Raposa Serra do Sol ao território ocupado pelos indígenas em outubro de 1988, o que ficou conhecido como marco temporal]. Em 2013, o STF decidiu que a tese não era válida [para todos os casos, apenas para o da Raposa Serra do Sol]. Essa tese era muito conveniente diante da disputa de terras que estava em curso, não foi inventada à toa. Inclusive, houve uma situação muito estranha. O Supremo declarou que não havia marco temporal para todas as terras indígenas. Em nenhuma legislação do mundo um povo que foi retirado à força, foi expulso de seu território, não tem direito de retornar. Não quer dizer que seja sempre seguido, mas esse é um princípio de lei que, aliás, está lá atrás, já em 1973, quando foi promulgado o Estatuto do Índio. Está lá com todas as letras: os indígenas que tivessem sido levados à força de suas terras tinham direito de voltar quando cessasse, por exemplo, o desastre que os teria feito sair de lá. Isso aconteceu em muitos lugares do Brasil antes da Constituição de 1988, é óbvio.
Se o STF decidir a favor do marco temporal, que sinais serão passados à classe política, à população em geral e ao movimento indígena?
Seria uma enorme perda não só para os povos indígenas, mas para o Brasil como um todo. Devido ao papel tão importante da Amazônia no mundo, e o fato de que é uma característica dos povos indígenas preservarem tanto a floresta quanto a biodiversidade, isso significaria uma enorme perda mundial para o combate às mudanças climáticas. É extremamente grave. É curioso que durante muitos anos, as duas turmas do Supremo Tribunal Federal divergiam em relação à aplicação ou não do marco temporal. Mais estranho ainda é que, apesar de o Supremo Tribunal Federal ter declarado que essa tese não era válida no geral, a AGU já havia inventado a história de impor o marco temporal para toda a administração pública em 2012 [por meio da portaria 303/2012], e que em 2013 tenha precisado retroceder. Quer dizer, foi sepultada essa tese em 2013. Mas em 2017, já no governo Temer, [essa posição] voltou no parecer 001/2017 que até agora continua válido [o documento determina que as salvaguardas estabelecidas pelo STF à demarcação contínua da TI Raposa Serra do Sol sejam aplicadas a todos os territórios indígenas do país] . Se em 2013 o Supremo disse que a tese não era válida [para todas as terras indígenas], como a AGU emite esse parecer? É uma briga que começou realmente, acredito, no final da primeira década dos anos 2000.
Como se articulou, na época da Constituinte, a mobilização contra a garantia dos direitos indígenas na Constituição? O agronegócio, hoje o setor econômico que mais atua pela aprovação do marco temporal, era um ator importante?
Não era tão importante, certamente estava longe de ser tão importante quanto agora. Mas as mineradoras eram e já estavam muito aguerridas querendo que as terras indígenas fossem abertas também à mineração. Esse era um poder que já estava bem organizado e muito ativo. E o outro, menos organizado, pelo menos aparentemente, era o setor de hidrelétricas. Esses eram os dois grandes blocos, mas sobretudo, sem dúvida, as mineradoras.
Você avalia que o agronegócio foi se colocando como um ator contrário aos direitos indígenas conforme foi ganhando relevância econômica e política no Brasil?
Sim, você tem razão.
Em seu artigo “Índios na Constituição”, você afirma que foram fundamentais para a garantia dos direitos indígenas na Carta Magna a especificação da “capacidade jurídica dos índios e a definição de terra indígena”. Poderia explicar isso melhor, por favor?
A capacidade jurídica dos indígenas – que na época ainda eram chamados de “índios” – foi extremamente importante, e está garantida pelo artigo 232. Isso passou sem nenhuma oposição. Também passou sem nenhuma oposição o fato que o Ministério Público Federal, que estava sendo repensado nas suas funções, deveria defendê-los. Antes, a AGU e o Ministério Público eram uma única instituição. Então, o Ministério Público Federal se distanciou da Advocacia-Geral da União e foi incumbido, entre outras coisas, da defesa dos direitos indígenas. Isso, e o fato de que os indígenas poderiam entrar sozinhos em juízo, mudaram completamente [o cenário]. Naquela época, muitos juízes consideravam que só a Funai podia entrar [na justiça] para defender ou atacar os direitos indígenas. E a Funai era, frequentemente, a parte contrária aos indígenas. Portanto, muitos juízes achavam que apenas a Funai podia representá-los em juízo. Isso curiosamente é algo que, apesar do artigo 232, ainda acontece muito, por mais que seja completamente esdrúxulo, porque os indígenas têm o direito [de acessar] diretamente à justiça. Isso passou sem nenhuma oposição, acho que as pessoas nem se deram muito conta do que isso implicava.
Outra coisa é a definição de terras indígenas. Ficou muito claro, primeiro, que as terras indígenas não eram apenas uma área de habitação, mas sim uma área em que toda a vida material, cultural e espiritual se dava. Ou seja, os indígenas têm direito a um território onde possam exercer sua identidade e cultura. Isso significa que esse não é um território pequeno. Os povos que estão em áreas de colonização antiga – por exemplo, no Nordeste ou no Sul – já foram cercados e expropriados, muitos deles, durante o século 19, sobretudo. Ali, as terras indígenas são pequenas. Mas, na época [da Constituinte], em 1988, embora já existisse um grande avanço sobre a Amazônia desde os anos 1970, ainda havia muitas áreas pouco conhecidas dos colonizadores onde havia povos indígenas. Por isso é que as grandes terras indígenas estão na Amazônia, como a maior delas, Yanomami, e a segunda maior, Vale do Javari. São áreas grandes que estão agora sendo roídas de fora pra dentro.
Fonte: Via apublica.org