Autores: Leandro Barbosa.
Cada árvore que cai na terra do povo Munduruku não significa apenas mais uma área da Amazônia sendo desmatada para dar lugar à soja. Para os indígenas, a invasão do agronegócio representa também o adoecimento do corpo e o esgotamento da espiritualidade, ensina o cacique Josenildo dos Santos da Cruz, 37 anos, que habita a Terra Indígena (TI) Munduruku e Apiaká do Planalto Santareno, em Santarém (PA).
Josenildo recebeu a Agência Pública em 2019 para mostrar os riscos e violências que os indígenas enfrentam na luta para que os sojicultores saiam de seus territórios.
Na ocasião, a reportagem esteve em uma área entre duas glebas públicas federais, a Ituqui e a Concessão de Belterra, onde se localizam ao menos quatro aldeias indígenas, habitadas pelos Munduruku, e três comunidades quilombolas – Murumuru, Murumurutuba e Tiningu.
Ao revisitar a região agora em 2023, nada mudou – ao contrário, piorou a situação. Os processos demarcatórios seguem sem definição, enquanto fazendas de grãos se expandem sobre territórios tradicionais. Em vez de floresta amazônica, o que se vê são vastos campos de soja.
O cacique está cansado de ver as denúncias feitas pela comunidade indígena serem ignoradas pelos governos estadual e federal. “A gente luta e pede que os órgãos ambientais façam o seu trabalho. Mas quando ligamos na Sema [Secretaria de Meio Ambiente do Pará], quando denunciamos, nada é feito. Parece que há um aparelhamento dentro dos órgãos de fiscalização”, afirma a liderança indígena. Por sua vez, a Sema afirma que a fiscalização em terra indígena é de responsabilidade dos órgãos federais.
Degradação
Desde o final da década de 1990, quando a soja entrou no Planalto Santareno, os indígenas têm visto a floresta tombar. Em 2008, os Munduruku reivindicaram a demarcação da TI Munduruku e Apiacá, uma área de 1,7 milhão de hectares que faz parte do território tradicional da etnia. Diante da morosidade do Estado, em 2015 os próprios indígenas demarcaram seu território, mas a Fundação Nacional do Índio (Funai) iniciou os estudos para a demarcação só em 2019, devido a uma intervenção do Ministério Público Federal (MPF) que culminou em um acordo entre o órgão, a Funai e a União. Mas nada mudou nos últimos quatro anos.
A expectativa de Josenildo era de receber notícias sobre o estudo no final do mês de abril, o que não ocorreu. A Pública solicitou informações à Funai, que afirmou: “O procedimento demarcatório, em todas suas fases, especialmente em sua etapa de estudos, possui grande complexidade, dependendo de uma série de fatores e atores, não sendo possível definir expectativas de prazo”.
Segundo dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), mais de 600 indígenas residem nas quatro aldeias do território autodemarcado, que são: Açaizal, Amparador, Ipaupixuna e São Francisco da Cavada. Na Açaizal, aldeia em que Josenildo vive, localizada a oeste da área definida pela comunidade, é onde ocorre a maior degradação ambiental, devido ao avanço da monocultura. Também é o centro do conflito com os sojeiros.
A Pública teve acesso a um laudo técnico solicitado pelo MPF ao Instituto de Ciências e Tecnologia das Águas (ICTA), da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), que mostra o grau de destruição ambiental provocado pela soja. Entre 2018 e 2021, foram identificados mais de 100 hectares com sinais de alteração branda a forte na Açaizal, além de uma possível degradação de nascentes, associada ao processo de mudança de uso do solo.
O documento “Avanço de Áreas Agrícolas na TI Munduruku do Planalto Santareno desde Início do Processo de Demarcação”, elaborado pelo professor doutor João Paulo de Cortes, constata o avanço do agronegócio para dentro dos limites de autodemarcação da TI. O laudo foi requisitado pelo MPF devido à percepção dos moradores locais da invasão da monocultura no território. Na área apontada com maior índice de degradação, foram identificados ao menos dez imóveis registrados no Cadastro Ambiental Rural (CAR) com algum grau de sobreposição com as áreas alteradas identificadas através de imagens de satélite.
“O que a gente chama de área degradada é uma mudança da vegetação primária para uma vegetação mais rala e de solo exposto. O avanço é identificado a partir da evolução do uso do solo nas imagens de satélite”, explica Cortes. Segundo o professor, a análise, somada a outros dados sobre o avanço da monocultura no Planalto Santareno, permite observar que famílias que vivem mais próximas da soja têm uma perspectiva pior do que famílias em zonas mais protegidas ou mais afastadas do cultivo. “A monocultura tem esse efeito de desestabilizar as comunidades. Tem uma série de comunidades extintas que a gente observa dentro dessas zonas de monocultura”, afirma o pesquisador.
A fala de Cortes coincide com o relato do cacique Josenildo: “O pessoal que mora próximo à plantação de soja não demora muito tempo ali. Porque não aguenta. Não consegue viver com a quantidade de veneno que entra na sua casa. Nós estamos aqui [na aldeia], porque nós somos fortes e aqui é a nossa terra. É o local onde a gente vive. Onde a gente nasceu. E onde a gente quer continuar vivendo. É por isso que a gente luta e ainda acha força para resistir”, afirma o cacique.
Terra e identidade
Em setembro de 2018, dez sojicultores que cultivam dentro da TI Munduruku e Apiaká acionaram a Justiça para serem considerados “litisconsortes passivos necessários” na ação movida pelo MPF, como apurou o site de Olhos nos Ruralistas. Litisconsorte passivo necessário é aquele que tem interesse em comum com o réu e que será afetado pelas decisões que resultarem da ação. O pedido foi negado em primeira e segunda instância. Os requerentes foram: Ildo Valentin Borsatti, Rodrigo Borsatti, Adriano Gabriel Maraschin, Fábio Luis Maraschin, José Maraschin, Ignácio Maraschin, Germano Rene Durks, Francisco Alves de Aguiar e Ivo Luiz Ruaro.
A Pública esteve na aldeia Açaizal em abril deste ano, ocasião em que Ildo Valentin Borsatti aceitou falar com a reportagem. O argumento do sojicultor é que não há indígenas no território. “Criaram esse negócio de indígena aí há pouco tempo. Esse negócio do PT de se autodeclarar indígena. Aqui não existia índio. É tudo cearense que veio pra cá”, afirma o sojicultor. E continua: “Não existia [indígena na área]! Aliás, existir, deve ter existido. Tinha índio pra todo lado quando o Brasil foi descoberto, né? Mas, se for pra declarar alguém assim, tem que declarar o país inteiro”, disse Ildo, ao questionar a identidade dos Munduruku.
Um discurso muito usado pelo agronegócio local, como constatou o pesquisador Fábio Zuker, doutor em antropologia social pela Universidade de São Paulo (USP) e professor na Princeton University (EUA), nos seis anos em que realizou sua pesquisa de doutorado na região do Baixo Tapajós. “Um argumento racista e que se vale de uma imagem folclorizada de indígenas como parados no tempo. Como se os indígenas não pudessem se transformar, ao longo da história, a partir de lógicas inerentes à sua cultura”, afirma.
Zuker explica que ali houve uma incorporação de migrantes nordestinos às aldeias indígenas. “Uma vez forasteiros, chegados ao longo do século XX de estados como Ceará e Maranhão, eles foram indigenizados. Casaram-se com indígenas – usualmente é o homem de fora que se casa com a mulher indígena – e aprenderam a caçar com seus sogros e genros. De modo que ninguém questiona seu pertencimento ao povo indígena, ou que seus filhos sejam indígenas”, explica o professor.
E conclui: “Desta forma, é pelos laços de parentesco que diversas comunidades indígenas do Baixo Tapajós incorporaram pessoas vindas de outras regiões às suas comunidades. Cabe aqui também entender que muitos desses migrantes nordestinos são, eles mesmos, netos de indígenas, e que puderam, na Amazônia e na acolhida comunitária que lhes foi oferecida, encontrar um solo fértil para onde recuperar traços culturais com os quais já conviviam em suas famílias”.
Em 2019, Josenildo já havia declarado que, além de ser “uma praga”, a expansão da soja causava violência na região. Seu irmão, Belarmino Cruz, foi assassinado durante uma visita à cidade de Mojuí dos Campos em setembro de 2018. “Ele foi morto com seis facadas nas costas e, segundo o assassino, foi assassinado por engano. Existe uma investigação em curso em relação a isso, mas a gente não pode negar que algumas pessoas ouvidas pela polícia disseram que não era pra ter sido meu irmão, era pra ter sido eu, como liderança”, afirma. Outra linha de investigação dá conta de que Belarmino foi assassinado em uma briga de bar. O caso está sendo investigado pela Polícia Civil de Santarém até hoje.
Agora, em 2023, ele desabafa novamente: “A gente é ameaçado em tudo nessa vida. O sentimento é de impotência. Se a gente denuncia alguma coisa, é ameaçado. Quando derrubam a floresta, acabam com as nossas plantas medicinais e nossos frutos. Nosso espírito enfraquece. A gente fica preso numa área, porque já não nos deixam andar por onde a gente andava antes”.
Fonte: Via apublica.org