Autores: Caio de Freitas Paes.
Índice do Conteúdo
Cabe ao Governo de Goiás e à União a total reintegração de posse do maior quilombo do país, na Chapada dos Veadeiros
Depois de mais de 40 anos de luta, seja nos tribunais ou dentro da burocracia governamental, o povo Kalunga teve boas notícias quanto à retomada de suas terras. No último dia 15 de maio, a Justiça Federal ordenou que o governo de Goiás e a União cumpram, em até 30 dias, a reintegração de posse “de todas as áreas esbulhadas/invadidas no interior” do Território Quilombola Kalunga (TQK), às voltas do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Em extensão, trata-se do maior quilombo do país, além do primeiro território reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) como área conservada graças a povos tradicionais no Brasil.
Obtida pela Agência Pública, a decisão do juiz federal substituto Thadeu José Piragibe Afonso, da Subseção Judiciária de Formosa (GO), determina que todos os invasores têm dez dias para saírem voluntariamente da área, com mais de 260 mil hectares em pleno Cerrado entre Cavalcante, Teresina de Goiás e Monte Alegre de Goiás – municípios no nordeste do estado, próximo à divisa com Tocantins.
“Não havendo desocupação voluntária”, diz Afonso, “o cumprimento da reintegração de posse deverá ocorrer com a participação da União, do Estado de Goiás, do Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] e da Fundação Cultural Palmares, por meio de ações concertadas e coordenadas”.
“Desde já, autorizo o uso de força policial, devendo ser oficiadas a Polícia Federal e a Polícia Militar do Estado de Goiás” para apoiarem a reintegração, determina o magistrado. Por ser uma decisão de 1ª instância, ainda cabe recurso por parte da União e do Estado de Goiás.
Não é a primeira sentença do juiz federal em Formosa em favor dos quilombolas. Em março de 2022, Afonso determinou a reintegração de posse da fazenda Vista Linda 4, com mais de 2 mil hectares dentro do quilombo, cuja transferência segue em andamento. O caso avançou em abril passado, após um acordo entre a Advocacia-Geral da União (AGU) e o dono do imóvel para “definir a extensão e os limites da área desapropriada para, então, ser fixado o preço a ser pago [pela União] pelas terras” – como noticiado pela Agência Brasil.
“Para nós, enquanto povo e comunidade, é uma alegria muito grande essa decisão depois de tantos anos de luta, com ameaças de grileiros, fazendeiros e pistoleiros”, disse à Pública Carlos Pereira, presidente da Associação Quilombola Kalunga (AQK), representante dos mais de oito mil quilombolas que vivem nas 39 comunidades que formam o território.
“Os fazendeiros estão em áreas importantes para nós, com atrativos naturais que a gente pode explorar com turismo sustentável e em partes onde nosso povo costumava pescar, onde nossa comunidade pode plantar e colher”, afirma ainda o presidente da Associação Kalunga.
Titulação “a passos deveras lentos”
A recente vitória dos kalungas tem origem em uma ação proposta pelo Ministério Público Federal (MPF) em agosto de 2021. Assinado pelo procurador Daniel César Azeredo Avelino, o processo relata que a titulação definitiva do quilombo Kalunga tem ocorrido “a passos deveras lentos” desde 1998, quando a União reconheceu oficialmente a área.
“Dos 262 mil hectares que integram o TQK [quilombo Kalunga], apenas aproximadamente 34 mil hectares foram titulados definitivamente à comunidade”, afirma o procurador federal na ação.
Ao MPF, o Incra – um dos responsáveis pela regularização – alega que a demora se dá por “falta de suporte técnico e de pessoal qualificado e a ausência de recursos financeiros (principalmente para depósito prévio do valor das indenizações)”, para pagar donos de fazendas situadas dentro do quilombo.
Para o MPF, “é inadmissível que”, passadas quase duas décadas desde que as funções de delimitação, demarcação e titulação de quilombos brasileiros foram transferidas ao Incra, “esta autarquia venha alegar que não possui conhecimento da realidade do Território Kalunga”.
“Não se pode conceber a ideia, pois absolutamente desarrazoada, de que 18 anos não foram suficientes para se conhecer a realidade dos Kalungas, se promover o treinamento e a qualificação de seu corpo técnico e se planejar a solução da questão fundiária”, alega o Ministério Público.
Conforme dados coletados pelo MPF, os governos federal e goiano precisam titular pelo menos 186 mil hectares de terras – 86 mil hectares do estado de Goiás, e outros 100 mil sob cuidados do Incra – dentro do território. A ação informa ainda a existência de “ao menos 14 conflitos possessórios instalados e em andamento” no quilombo goiano.
O Ministério Público também justifica a inclusão do Estado de Goiás no caso. Conforme a ação, o governo estadual já transferiu a posse de cerca de 77 mil hectares do território aos kalungas, mas a medida “não respeita o comando constitucional” – que, segundo o MPF, “é claro em garantir aos quilombolas o direito de propriedade definitiva sobre todo o seu território demarcado”. “Observa-se, pois, que o direito de posse é ‘menor’ que o direito de propriedade”, afirma o procurador do caso.
Procurado pela Pública, o Incra disse que o “cumprimento da decisão proferida não é atribuição do Incra, e sim de instituições que têm poder de polícia”, que “não compete ao Incra confirmar, validar ou retificar matrículas em cartórios” e que “também é necessária disponibilidade orçamentária e financeira para avaliar imóveis rurais particulares e ajuizar as ações desapropriatórias – o que não garante decisão judicial em favor da autarquia”. Já o Governo de Goiás não respondeu até o fechamento desta reportagem; caso o faça, o texto será atualizado.
Desmatamento, garimpo e turismo ilegal
Nos últimos anos, quilombolas avançaram na fiscalização e proteção de suas terras. Entre 2018 e 2021, a Associação Quilombola Kalunga desenvolveu parceria com ONGs brasileiras e internacionais para sistematizar informações sobre solo, nascentes e cursos fluviais – há pelo menos 300 nascentes d’água na área – em seu território, como relatado pelo observatório De Olho nos Ruralistas.
Com tais ferramentas e acesso às comunidades, a AQK fez um levantamento sobre os invasores em suas terras. A Pública teve acesso ao material, entregue à Delegacia de Repressão a Crimes Contra o Meio Ambiente da Polícia Federal, para ajudar na identificação daqueles que, com a recente decisão judicial, deverão sair da área. Haveria pelo menos dez fazendas registradas dentro do quilombo, além de três glebas do governo goiano também ilegalmente ocupadas.
Parte dos invasores estariam praticando crimes ambientais na área, como “desmatamento” e “extração de madeira para comercialização”, além de “garimpo ilegal” na região. A AQK ainda identificou que há invasores loteando ilegalmente partes da área, além de controlarem a entrada de cachoeiras no quilombo, inclusive com a existência de pousadas irregulares no local.
Os impactos são mais que visíveis. Em duas longas reportagens realizadas no território em 2021, a Agência Pública mostrou como a seca prolongada tem sido cada vez mais recorrente nas terras kalungas – o que dificulta o plantio de mandioca, arroz, milho e feijão-de-corda, usados tanto na alimentação dos quilombolas, quanto no escoamento para feiras livres em toda a Chapada dos Veadeiros.
Questionado sobre os impactos da recente decisão judicial, que poderia desencadear reações violentas dos invasores, o presidente da AQK disse que “a maioria da comunidade teme [represálias], sim, porque todos temos família, mas a gente não pode deixar que o medo nos domine”. “Assumimos esse risco, a gente segue na luta, no esforço para que tudo fique bem para a nossa comunidade, estando amparados e sempre acreditando no cumprimento das leis”, afirma Pereira.
Fonte: Via apublica.org