Autores: Anna Beatriz Anjos.
Dois anos depois de cinco países e 17 entidades filantrópicas prometerem, num anúncio considerado histórico, doar US$ 1,7 bilhão para que os povos indígenas fortaleçam a proteção das florestas, uma das principais demandas das comunidades segue sem ser cumprida: o acesso direto a esses recursos.
Um relatório lançado durante a 28ª Conferência do Clima das Nações Unidas (ONU), a COP28, que acontece até 12 de dezembro em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, revelou que em 2022 apenas 2% dos valores repassados pelos doadores – o equivalente a US$ 8 milhões de um total de US$ 494 milhões – foram direcionados a organizações, redes ou fundos liderados por povos indígenas e comunidades locais, que abrangem ribeirinhos, extrativistas e quilombolas, entre outros.
Essas populações deveriam ser as grandes beneficiadas pelo dinheiro. Estudos científicos apontam que os territórios indígenas, sobretudo quando demarcados, têm sido as barreiras mais efetivas contra o desmatamento – uma dos fatores que contribui com as mudanças climáticas em todo o mundo. No Brasil, essa é a principal fonte de emissões de gases de efeitos estufa, cuja alta concentração na atmosfera leva ao aquecimento global.
Quase metade dos recursos (43%, ou US$164 milhões) doados em 2022 ficou com organizações não governamentais internacionais que realizam projetos com essas populações. O segundo maior recebedor foram os governos, que concentraram 20% (US$76 milhões) do total; seguidos das agências e fundos multilaterais (US$44 milhões) e ONGs nacionais (US$42 milhões), ambos com cerca de 11%. Mecanismos ou fundos de regranting internacionais ou regionais receberam 9% (US$34 milhões) e contratantes, 5% (US$ 18 milhões). Em último lugar nos repasses estão as entidades indígenas e de comunidades locais.
Isso não significa que os aportes feitos a ONGs ou órgãos governamentais, por exemplo, não atinjam as comunidades. Normalmente, esses intermediários são escolhidos pelos doadores justamente por seu histórico na prestação de suporte às populações indígenas e tradicionais, seja financeiro ou técnico. Muitos são considerados aliados importantes da causa.
Mas nos últimos anos as organizações indígenas vêm demandando a correção dessa estrutura desigual de distribuição de recursos. De acordo com elas, ao passar pelos intermediários, parte dos fundos muitas vezes se esvai por meio dos custos operacionais dessas instituições, sobretudo quando há mais de uma delas na cadeia dos projetos, em que as comunidades estão nas pontas e são as últimas a serem impactadas pelos recursos.
Além disso, argumentam que, quando o dinheiro é investido diretamente em organizações indígenas, as comunidades ganham poder de decisão. Em vez de apenas aceitarem as condições dos financiadores, podem influenciar o processo para que seja mais compatível às suas demandas e necessidades. Afinal, são elas as “cuidadoras das florestas e donas dos territórios”, disse à Agência Pública o equatoriano Juan Carlos Jintiach, secretário executivo da Aliança Global de Comunidades Territoriais, formado por federações indígenas da América Latina, África e Indonésia. O grupo encabeça as tratativas com os doadores.
“Eles devem nos fortalecer a acreditar em nós, nos dar um voto de confiança. Não somente nos dar migalhas, pequenos fundos. Se nos pedem sabedoria, colaboração e apoio, daremos, mas eles devem nos retribuir com financiamento direto. É assim que os territórios e as comunidades que estão na base serão fortalecidos”, complementa.
Quadro de 2021, que já era ruim, piorou
O compromisso, batizado de Indigenous Peoples and Local Communities’ Forest Tenure Pledge, foi anunciado em 2021, durante a COP26, em Glasgow (Escócia), pelos governos do Reino Unido, EUA, Alemanha, Noruega e Holanda, junto a 17 fundações internacionais, como Ford e Oak. O valor bilionário seria entregue aos povos indígenas e comunidades locais entre 2021 e 2025.
Um dos objetivos do compromisso, de acordo com um comunicado publicado à época, era “priorizar a inclusão” dessas populações “na tomada de decisões e na concepção e implementação de programas e instrumentos financeiros relevantes”, diante de seu papel como “guardiões das florestas e da natureza”.
No entanto, o segundo e recém-divulgado balanço do cumprimento da promessa, produzido pelos próprios financiadores com base no ano de 2022, mostra que essa meta está longe de ser atingida. E indica uma piora no acesso direto das comunidades aos recursos – no primeiro relatório, referente a 2021, 7% das doações tinham sido feitas diretamente a entidades mantidas por povos indígenas e locais.
Uma revisão metodológica neste ano indicou que a proporção, na verdade, foi menor: de 2,9%. Ainda assim, em 2022 houve queda nesse percentual. No documento, os doadores explicam que o valor em financiamento direto a organizações indígenas e de comunidades locais aumentou em termos absolutos em 2022, mas diminuiu proporcionalmente diante da elevação dos valores totais.
Eles admitem que esse resultado é “decepcionante”, uma vez que no relatório do ano passado já reconheciam a necessidade de “aumentar o financiamento e o apoio direto” aos povos indígenas e comunidades locais, investindo em mecanismos “liderados ou governados” por eles.
O grupo de financiadores aponta algumas causas para o problema. Uma delas seria a “capacidade limitada, embora crescente”, das organizações mantidas por essas populações de concorrer para o recebimento de financiamentos internacionais e gerenciá-los. Assim como a dificuldade que essas entidades enfrentam para atender às “significativas demandas administrativas que o financiamento direto” envolve, entre outros pontos.
Os povos indígenas têm se organizado, nos últimos anos, para preencher essa lacuna por meio da criação de mecanismos de financiamento liderados por suas próprias organizações. Há um mosaico de iniciativas do tipo no mundo, e, no Brasil, existem duas já bem consolidadas: o Podáali, primeiro fundo indígena a atuar em toda a Amazônia brasileira, criado pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), e o Fundo Indígena do Rio Negro (FIRN), que atende aldeias no Amazonas, na região da tríplice fronteira com Venezuela e Colômbia.
Diante da necessidade de cumprir as exigências burocráticas e técnicas envolvidas nos processos de financiamento, a Aliança Global de Comunidades Territoriais lançou, no ano passado, uma plataforma para garantir o acesso direto dos povos indígenas a recursos para combater as mudanças climáticas e a perda de biodiversidade.
A plataforma Shandia trabalha em três frentes principais: aperfeiçoar o diálogo com parceiros e doadores, produzir dados sobre os recursos que efetivamente chegam às comunidades, e principalmente, criar e fortalecer mecanismos adequados para receber o financiamento.
O primeiro relatório da Shandia traz uma pesquisa com os 12 intermediários que trabalham de maneira mais próxima às organizações que compõem a Aliança Global. O levantamento concluiu, por exemplo, que metade dessas instituições tem orçamento médio anual superior a US$ 10 milhões, enquanto apenas seis fundos liderados por indígenas registraram, em 2022, orçamento superior a US$ 1 milhão nas florestas tropicais de África, Ásia e América Latina.
“Este não é um argumento para retirar fundos aos nossos parceiros e aliados mais próximos, mas aponta para a necessidade imediata de aumentar o financiamento às nossas organizações para criar condições de concorrência equitativas”, destaca o documento.
Diante de todo o trabalho para fortalecer os fundos indígenas, Jintiach recebeu os números trazidos pelo relatório do grupo de financiadores com “desalento”. Ele defende que o “paradigma precisa mudar” com urgência. “Os fundos têm que ir para as comunidades territoriais”, reivindica.
A liderança demanda que haja mais transparência no cumprimento do compromisso pelos doadores para que as organizações indígenas e de comunidades locais possam monitorar atentamente para onde o dinheiro está sendo canalizado.
Avanços em valores e distribuição geográfica
Apesar da piora no financiamento direto a povos indígenas e comunidades tradicionais, o grupo de doadores conseguiu, em 2022, aumentar em US$172 milhões os valores desembolsados no âmbito do compromisso em relação a 2021. Somados, os aportes nos dois anos totalizam US$815 milhões, o que indica que deve ser possível atingir a meta de US$1,7 bilhão até 2025.
Além disso, a desigualdade geográfica na distribuição das verbas, também encarada como um problema, foi suavizada, embora ainda persista. A maior parte do financiamento, 51%,
foi direcionada para ações voltadas a povos indígenas e comunidades locais da América Latina; 36% para a África, 32% para ações globais e 13% para a Ásia.
No ano passado, a América Latina já liderava o ranking, tendo sido destino de 38% das doações, mas a África aparecia apenas no terceiro lugar, com 36% dos recursos, atrás da ações globais (38)%. O financiamento para a África aumentou 139% na comparação com 2021, e valores mobilizados para a Ásia, apesar de ainda minoritários, também dobraram.
Fonte: Via apublica.org