Autores: Caio de Freitas Paes.
Entre pés de açaí, cacau-roxo e cupuaçu, a pequena agricultora Maria Eva Martins caminha preocupada até um pequeno açude em seu lote de terra, conquistado após mais de dez anos de luta pela reforma agrária na zona rural de Marabá, sudeste do Pará. Diante da água turva e esverdeada, ela vê o futuro com pessimismo.
“Olha o nível do açude: do jeito que ‘tá’, não vai aguentar até o fim da seca. Vai ser duro esse ano… é muito difícil viver sem água”, diz. Ela não é a única nesta situação.
Historicamente, a luta por água na região de Carajás, sudeste do Pará, atinge povos indígenas segundo o Mapa dos Conflitos, feito pela Agência Pública a partir dos relatórios anuais de conflitos no campo da Comissão Pastoral da Terra (CPT). As principais vítimas eram os Xikrin, que por anos tem lutado contra a contaminação do rio Cateté, que abastece suas terras.
Mas a primeira imagem do problema após o governo Bolsonaro mostra algo diferente: posseiros, ribeirinhos e sem-terra estão cada vez mais sendo arrastados para novos conflitos.
“Fico triste de dizer isso, mas dói. Dói viver sem água em pleno Pará”.
Dona Eva, Mais antiga liderança do Projeto de Desenvolvimento Sustentável Porto Seguro
Em visita ao sudeste do Pará, a Pública ouviu povos do campo sobre o atual cenário das lutas por água, seja para consumo, uso na agricultura ou pesca, entre outros fins. Também ouviu defensores de direitos humanos, policiais, procuradores federais e servidores ambientais – todos alertam para o avanço do garimpo ilegal, com graves danos aos afluentes, nascentes e rios, além de ameaçar a vida de quem deles depende.
“A formação dos municípios daqui remonta à ditadura, ao plano dos militares de tornarem Carajás num polo de pastoreio e abate de gado, de extração de minérios em larga escala”, disse à Pública José Batista, advogado da CPT na região há mais de 30 anos. “Muitos vieram com esse sonho e terminaram em condições precárias, no trabalho escravo, sem terra nem água”, afirma ainda.
Por seu trabalho junto a assentados da reforma agrária, associações de pequenos produtores rurais e trabalhadores sem-terra, Batista conhece, como poucos, as dificuldades da agricultura familiar no sudeste do Pará – “onde impera a economia do capim”, diz ele.
“Boa parte da água utilizada em toda a região passa por rios menores, como o Cateté, o Novo, o Verde, entre outros, cada vez mais comprometidos pelo abuso dos latifundiários e pelo avanço do garimpo ilegal na região”, disse o advogado da CPT.
Em campo, a reportagem notou que os conflitos por água hoje envolvem tanto camponeses, como agricultoras assentadas via reforma agrária em Marabá (PA) e pequenos produtores em municípios próximos, como Canaã dos Carajás (PA), quanto ribeirinhos, como os pescadores do Pedral do Lourenço, em Itupiranga (PA), que resistem à construção da hidrovia Araguaia-Tocantins.
“Aqui chove muito e, mesmo assim, ainda falta água”
Marcado por massacres como o dos 17 acampados sem-terra em Eldorado dos Carajás (PA), em 1996, o sudeste paraense ganhou notoriedade a partir dos conflitos por terra nas últimas décadas.
Quem sobrevive aos conflitos por terra e conquista um pedaço de chão, por vezes, se depara com a falta d’água, como no caso de dona Eva e das agricultoras do Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Porto Seguro, na zona rural de Marabá (PA), a 600 km da capital Belém.
Ter um açude é um privilégio na região, como se percebe no caso de Iraci de Souza Almeida. Sem açude nem poço, dona Iraci sequer possui água em seu lote – o que dificulta a sobrevivência de suas roças de banana, cacau e outras variedades na época da seca.
“Conseguimos ajuda técnica da prefeitura [de Marabá], sementes, mudas nativas, mas de que adianta se não tem água? Não temos condição de contratar alguém pra furar um poço, custa mais de R$ 10 mil… mas os fazendeiros daqui têm e vão pegando a água pra eles, secando tudo”, diz.
A indignação de Eva, Iraci e outras agricultoras do Porto Seguro com a falta de água não vem sem razão. Imagine ter de lidar com a seca dependendo da contratação de caminhões-pipa ou da boa vontade de vizinhos que têm acesso a água, numa região farta em afluentes, igarapés, nascentes e até grandes rios – o Araguaia e o Tocantins, no caso, que se encontram neste mesmo ponto do Pará.
“Realmente, aqui chove muito e, mesmo assim, ainda falta água”, disse à Pública o superintendente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) no Sudeste do Pará, Reginaldo Rocha de Negreiros. “Você até encontra água em algumas fendas subterrâneas, mas é muito caro abrir poços e nem sempre é garantia de achar. No caso dos assentados, só se resolve o problema com a participação do governo federal em parceria com o poder local”, afirmou.
Perguntado sobre eventuais programas federais para ampliar o acesso a recursos hídricos para camponeses na região, Negreiros mencionou apenas o Água para Todos – parte do novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), anunciado pelo governo Lula no início do segundo semestre. Mas o superintendente do Incra não detalhou ações concretas ou previstas para o sudeste do Pará.
“Nosso maior inimigo são os garimpeiros”
Saindo de Marabá, rumo ao sul, a luta camponesa pela água revela outro tipo de algoz: mineradoras e garimpos que limitam – e ameaçam – o acesso aos recursos hídricos para a agricultura familiar. Em Canaã dos Carajás, a 220 km de Marabá, agricultores se esforçam para produzir alimentos a despeito de intimidações e dos impactos da atividade garimpeira na terra e nos veios d’água.
Proporcionalmente, o município foi aquele com o maior aumento populacional em todo o Brasil nos últimos 13 anos, de acordo com a edição mais recente do Censo. Tal explosão demográfica foi motivada, em grande parte, pela abertura de novas frentes de garimpo em Canaã dos Carajás, além de novos projetos da mineradora Vale e algumas de suas concorrentes no local.
“Uma mineradora estrangeira [a australiana Oz Minerals] que vai investir num projeto aqui ao lado nos procurou, disse que queria nos ajudar e perguntou qual era nosso maior problema. Nós respondemos: é água”, disse à Pública o trabalhador sem-terra Rivelino José Pereira de Torres, uma das lideranças no acampamento Eduardo Galeano, nos limites da sede de Canaã.
“Temos um riacho que passa aqui, mas não contempla a todos porque temos áreas muito secas. Dá para cavar poços, mas aqui, em Canaã, tem um diferencial: como é uma terra muito rica em minérios, a água é, digamos assim, muitas vezes ‘contaminada’ pela natureza, é grossa, ‘salobra’ – se você beber sem tratar, arrebenta com os seus rins”, afirmou Torres.
Como em outros locais visitados pela reportagem, quem não tem água em sua terra no acampamento depende do abastecimento de caminhões-pipa, contratados esporadicamente pelos sem-terra. Além disso, quem tem acesso a veios d’água normalmente compartilha estes recursos com os vizinhos.
O representante do MST também mostrou à Pública outras ameaças no horizonte do acampamento, onde fica um dos muitos garimpos ilegais em Canaã – com trânsito de homens armados e também um alvo constante de operações policiais.
No momento da visita, a reportagem não viu movimentações nos arredores do garimpo, dado que a Polícia Federal havia feito uma operação de desmonte da estrutura dias antes. Mesmo assim, a liderança sem-terra disse que era “questão de tempo” até que os garimpeiros voltassem, usando explosivos para abrir novos poços para extração de cobre.
Desde então, a Pública já recebeu diversos alertas de moradores do acampamento sem-terra sobre a volta de homens armados a serviço do garimpo de cobre no local – próximo à Floresta Nacional de Carajás e ao Parque Nacional dos Campos Ferruginosos, ambas unidades de conservação federais.
“Nosso maior inimigo são os garimpeiros. Eles até ‘tentam’ os acampados e propõem comprar lotes de terras deles [sem-terra] para garimpar… considerando que nós sempre orientamos as famílias a não vender – nós nem conseguimos a terra, como que poderíamos vender?”, disse.
Uma região à beira da “maior crise hídrica da história”
Durante visita ao sudeste do Pará, a Pública também ouviu servidores ambientais, agentes de segurança e procuradores da República – todos categóricos ao descreverem a gravidade da situação no que se refere à proteção dos recursos hídricos.
“Temos visto um grande impacto nas matas ciliares aqui na bacia hidrográfica Araguaia-Tocantins, com uma grande ocupação que vai ‘do rio até a outra margem’, por assim dizer, especialmente por latifundiários – que, em muitos casos, colocam seus jagunços em terras que por vezes são griladas e desrespeitam completamente as normas ambientais”, afirmou à Pública o procurador do Ministério Público Federal (MPF) Igor de Oliveira.
O procurador também enxerga relação entre ruralismo e garimpo no sudeste do Pará. “É comum que o latifundiário transforme uma parte de sua terra em pasto para gado, outra em cultivo de soja e, em outro pedaço, ele cave um buraco e comece sua própria mina”, disse Oliveira, que destacou a recorrência de casos de “contaminação das águas com mercúrio e contaminação de populações urbanas pela ingestão dessas águas”.
Para o coordenador de Uso Público e Proteção do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) em Parauapebas (PA), Vitor Garcia Neto, o resultado da pressão de setores extrativistas – especialmente o do garimpo ilegal – se traduz em um cenário ainda mais preocupante.
“Já estamos passando pela maior crise hídrica da história aqui da região”, disse o coordenador no ICMBio em Parauapebas, a 700 km de Belém (PA). “Estão abrindo garimpo a torto e a direito, garimpo de ouro, cobre, manganês e de areia também, contaminando, diariamente, rios importantes como o Itacaiúnas, o Tocantins e o próprio Parauapebas”, disse Garcia.
Para o coordenador no ICMBio, o aumento populacional no sudeste do Pará, combinado à ofensiva de garimpeiros, vai comprometer o abastecimento das populações urbanas, além de gerar novos conflitos ligados à questão da água nas zonas rurais. À Pública, ele estimou que pelo menos 10 dos principais rios na região já estão comprometidos, poluídos por rejeitos do garimpo.
“O grande impacto deste avanço do garimpo ilegal é a contaminação dos rios de Carajás. O rio Itacaiúnas hoje, por exemplo, ainda não está de todo comprometido, mas já notamos manchas de metais pesados vindas de rios menores, como o Azul, o Verde, o Novo, o Parauapebas, todos com pontos ativos de garimpo… no fim, isso impede até a regeneração de rios e nascentes que nós fiscalizamos”, afirmou Garcia.
Cristalino, onde agricultores e garimpeiros convivem
A alguns quilômetros do acampamento Eduardo Galeano, na zona rural de Canaã dos Carajás, é a combinação entre mineração industrial e garimpo que ameaça os recursos hídricos para mais de 100 famílias camponesas. Elas vivem em disputa com a Vale S/A, numa região conhecida como Cristalino, onde a mineradora quer instalar um projeto de mesmo nome para extração de cobre e ouro em larga escala.
Conforme apurado pela Pública, há garimpeiros em meio a associações rurais na área, por vezes dificultando as negociações para regularizações fundiárias, além de atraírem forças de segurança que combatem a atividade garimpeira clandestina.
Na prática, agricultores familiares e garimpeiros convivem na região, a despeito das constantes operações policiais. Quando perguntados sobre o tema, posseiros evitavam o assunto, dizendo: “cada um sabe o que faz no seu lote de terra”.
“A gente avisa ao pessoal que [o garimpo] pode dar problema, mas alguém ouve? Que nada, eles teimam! Outra coisa: sou eu que vou lá falar pra garimpeiro parar? Eu não, não vou arranjar confusão pra mim… aí nós deixamos, e deu no que deu”, disse um dos agricultores do Cristalino, que pediu para não ser identificado.
A referência passada pelo agricultor é a operação Águas Turvas, instaurada em 2022 pela Polícia Federal (PF) em parceria com órgãos ambientais. Com três fases executadas desde então, a operação tem como foco o combate ao garimpo ilegal ligado à contaminação de afluentes e rios na região de Carajás.
“Inicialmente nós recebemos uma denúncia da Câmara de Vereadores de Parauapebas, relativa à contaminação do rio que ‘cruza’ a cidade. Seguimos a investigação e identificamos que o material poluente vinha de um afluente em Canaã: eram rejeitos e metais pesados usados num grande garimpo de ouro na área do Cristalino”, disse o delegado da PF em Marabá, Ezequias Martins da Silva, responsável pelo caso.
Outro dos envolvidos na operação Águas Turvas, o coordenador no ICMBio Vitor Garcia, lembrou de sua surpresa após a descoberta da fonte da poluição no rio Parauapebas. “Quando cheguei em Canaã, me deparei com a maior ilha [de garimpo] que já tinha visto na minha vida: nunca tinha visto tantas máquinas trabalhando juntas, eram 11 ilhas de extração gigantescas, com 21 PCs [pás-carregadeiras], ‘chupadeiras’, retroescavadeiras, tudo a céu aberto…”, afirmou à Pública.
“Era um maquinário caro, pesado, exposto para todo mundo ver. E ficou claro para nós que não era um garimpo qualquer, tinha investimento graúdo, era negócio de gente com grana… tinha até mesmo máquina da prefeitura de Canaã trabalhando no garimpo”, afirmou Garcia, que definiu o sudeste do Pará como “a nova fronteira do garimpo ilegal na Amazônia”.
De fato, uma das fases da operação Águas Turvas cumpriu mandados de busca e apreensão na Secretaria de Meio Ambiente de Canaã dos Carajás, além da residência do então secretário Dionizio Coutinho, conforme a própria prefeitura do município.
A Pública visitou a área do garimpo no Cristalino, desativado em uma das fases da operação da PF. À época, junho passado, o local já estava abandonado, mas restavam cicatrizes da atividade clandestina nos veios d’água – turvos e impróprios para consumo.
Segundo relato do delegado da PF em Marabá à Pública, tem havido um aumento no número de operações de combate ao garimpo na região. Segundo Ezequias da Silva, só no primeiro semestre de 2023 a quantidade de operações estava prestes a superar o total realizado em todo o ano passado.
Posseiros denunciam riscos às nascentes do Cristalino
A região do Cristalino consiste em 2,4 mil hectares de terras na zona rural de Canaã onde, desde 2015, vivem mais de 100 famílias de agricultores familiares. A área é vigiada 24 horas por dia pela empresa espanhola de segurança privada SegurPro, envolvida em denúncias de violência e até de assassinato, mas sem qualquer punição – como já relatado pela Pública.
Sem conflitos aparentes com os garimpeiros, os posseiros voltam suas críticas à mineradora Vale – que, segundo eles, põe em risco o abastecimento a partes do Cristalino.
“Aqui nós temos a benção de ter água mineral, pura, 24 horas por dia porque estamos no topo da serra, onde têm lagoas e cabeceiras [nascentes], mas a mineradora insiste em fazer sondagens nas cabeceiras, com risco de furar o lençol freático”, disse à Pública Valdeci Moreira Leite, liderança das regiões Alto da Serra e Axixá – onde se concentra boa parte das nascentes da área em conflito.
Mas a fartura que ele e outros trabalhadores rurais do Alto da Serra e Axixá usufruem é uma exceção.
Grande parte da área em disputa com a Vale não possui abastecimento de água, nem acesso direto às nascentes do Cristalino. Tal característica tem, inclusive, forçado alguns posseiros a entrarem em acordo com a mineradora para deixarem a região, conforme apurado pela Pública no local.
Por não sofrer com a falta d’água, Valdeci Leite mostrou como usa o recurso que tem ao seu dispor: em irrigações para o plantio de banana, jiló, tomate e também espécies típicas como o açaí.
“A gente sabe o que é biodiversidade na prática, porque cuidamos da roça e preservamos as matas ciliares e os veios d’água – até porque todo mundo sabe que ‘água é vida’, né”, afirmou o agricultor. “Infelizmente, depois das sondagens da Vale nas cabeceiras daqui, sentimos que a água perdeu um pouco da pressão… é triste, ainda mais porque a empresa diz que é ‘sustentável’ e tal, mas não é o que vemos aqui”, disse ainda Leite.
Fonte: Via apublica.org