Autores: Marina Amaral.
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Rio e Bahia juntos respondem por 43% das mortes provocadas pela polícia no país, de acordo com o anuário do Fórum de Segurança Pública, divulgado em julho deste ano, com dados de 2022. Também são campeões em chacinas perpetradas por policiais, como mostrou reportagem de José Cícero, na Agência Pública. Os dados são de um levantamento exclusivo do Instituto Fogo Cruzado.
Desde que o instituto começou a coletar os dados, no Rio de Janeiro, em 2016, foram 285 chacinas em ações policiais, que mataram 1.154 pessoas em sete anos. Na Bahia, onde o Fogo Cruzado começou o monitoramento em julho de 2022, foram 40 chacinas, que resultaram em 159 mortos em pouco mais de um ano. Apenas entre 4 e 22 de setembro de 2023, 21 pessoas morreram em cinco chacinas policiais em Salvador e na região metropolitana.
Mas não há menção à redução da letalidade policial entre os principais pontos divulgados pelo governo no Plano de Enfrentamento ao Crime Organizado, anunciado pelo ministro Flávio Dino na segunda-feira – quando também foi anunciada a destinação de R$ 20 milhões para o estado da Bahia e de equipamentos e homens da Força Nacional de Segurança para o Rio de Janeiro; mais exatamente, para o conjunto de 16 favelas da Maré, região que há décadas sofre com a violência de traficantes e policiais.
Mas o que vai resultar disso?
Como disse ao repórter José Cícero o especialista Dudu Ribeiro, da Iniciativa Negra e coordenador executivo da Rede de Observatórios da Segurança na Bahia, os investimentos estaduais feitos em segurança não têm contribuído para a redução da letalidade policial. “Nós temos visto ao longo dos últimos anos, na verdade, uma intensificação dessa violência policial com resultado de letalidade que tem a ver com mais de um elemento: com opções erradas dos últimos governos de fortalecer, por exemplo, as [tropas policiais] especializadas, que fortalecem o militarismo, mas também colocam mais recursos nas unidades que têm o índice maior de letalidade”, explicou.
Até hoje a PM baiana não usa câmeras corporais em ações policiais – uma das primeiras medidas a serem tomadas contra a letalidade policial, segundo especialistas.
Nesse quadro, não se pode atribuir apenas às facções criminosas, e à sua migração para a Bahia, o número de vítimas de homicídios no estado, que atingiu índices estratosféricos: foram 137 mortos apenas no mês de setembro, 46% deles atingidos em operações policiais, segundo dados do Instituto Fogo Cruzado. Entre 1° de janeiro e 30 de setembro, foram registrados 491 tiroteios em Salvador e na região metropolitana durante ações policiais que resultaram em 402 mortos e 79 feridos. O número de pessoas mortas é ainda maior que o registrado no Rio de Janeiro (340 vítimas em 2023).
Quanto ao Rio de Janeiro, em fevereiro de 2022, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que todos os policiais que participam de operações instalem câmeras nas fardas e GPS nas viaturas, mas até hoje a ordem da Suprema Corte não foi cumprida pelo governador Cláudio Castro.
A decisão do STF foi tomada no âmbito da ADPF 635, conhecida como ADPF das Favelas, iniciativa da sociedade civil para combater a violência nas operações policiais, apresentada à corte em 2019.
Na quarta-feira, um questionamento do Ministério Público Federal (MPF) suspendeu temporariamente o prometido envio da Força Nacional de Segurança ao Rio exatamente para saber se os preceitos do STF serão cumpridos nas operações policiais. Um estudo da Defensoria Pública do Rio de Janeiro entregue ao STF em agosto deste ano mostrou que os policiais apagaram imagens e taparam as lentes das câmeras – das 90 imagens requisitadas pelo órgão à Polícia Militar do Rio de Janeiro, apenas oito foram entregues, mas não revelavam o momento da prisão e da abordagem. Na Maré, foco da ajuda emergencial do Ministério da Justiça, em nenhuma operação policial de 2022 houve uso de câmeras corporais, segundo a ONG Redes da Maré, que atua há mais de 20 anos nas comunidades.
A organização estranhou também o fato de a região se tornar foco indesejado do envio das forças de segurança, principalmente porque a decisão do governo federal foi tomada depois de pressões do governador Cláudio Castro. Para a Redes da Maré, a nova ofensiva policial – e a ajuda do governo federal – foram motivadas por uma reportagem do Fantástico levada ao ar no dia 24 de setembro. Nas imagens, que foram obtidas junto à Polícia Civil do Rio, aparecem homens fortemente armados circulando e um treinamento de membros de facções criminosas em instalações semelhantes a um clube esportivo na Maré.
Segundo moradores e organizações que atuam nas comunidades, o fato já era amplamente conhecido por eles e por policiais antes da divulgação da reportagem (veja aqui a nota da Redes da Maré). “Gera uma preocupação de essa ação ser só para responder a um fato específico e criar um efeito de resposta muito pontual”, disse Eliana Sousa, presidente da Redes da Maré, à Folha de S.Paulo. “O sentido que essa imagem gera na cabeça das pessoas é: ‘Como é que pode chegar a isso?’. Como se a responsabilidade sobre chegar a isso fosse das pessoas que moram aqui ou dos próprios grupos [armados]. Mas, para os próprios grupos ocuparem esse espaço, tem todo um percurso de completo abandono do Estado em relação ao ordenamento das questões públicas”, disse a fundadora da Redes da Maré ao jornal.
Está na hora de ouvir com atenção especialistas em segurança e comunidades atingidas pelas operações policiais antes de traçar novos planos que pouco contribuem, quando não agravam, a violência vivida pelas famílias – seja na Bahia ou no Rio de Janeiro. Também é preciso ter a redução da letalidade policial como meta de segurança pública e investigar profundamente a radicalização e a milicianização das polícias em todo o país.
Fonte: Via apublica.org