Autores: Natalia Viana.
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Nas últimas semanas, graças ao trabalho de jornalistas e das polícias Federal e Civil do DF, ficou mais claro que a tentativa de golpe de 8 de janeiro teve mesmo enorme participação de militares, se é que não foi mesmo uma quartelada muito canhestra.
A coluna de Guilherme Amado mostrou que o carro usado na tentativa de ataque a bomba ao aeroporto de Brasília, na véspera de Natal, foi encontrado duas semanas depois com um sargento da Marinha – da ativa – também suplente de deputado federal pelo Republicanos, conhecido como Sargento Paulo. Segundo a Polícia Civil, a Hyundai Creta saiu de Brasília em 9 de janeiro.
No celular do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, tenente-coronel Mauro Cid – da ativa –, encontrou-se um documento que relata passo a passo o plano para o golpe: Bolsonaro encaminharia relatos de inconstitucionalidades do Judiciário aos comandantes das Forças Armadas e estes interviriam com base no famigerado artigo 142.
No mesmo aparelho, a PF recuperou conversas do grupo de WhatsApp “…Dosssss!!!”, que reunia oficiais, incluindo atuais e ex-comandantes de unidades. As mensagens golpistas vão desde gente dizendo que o Exército poderia ter atuado “há muito tempo” através de operações de contrainteligência até ex-comandante do Batalhão de Apoio às Operações Especiais afirmando que a ruptura “já aconteceu” e subchefe do Estado-Maior do Exército implorando para Mauro Cid convencer Bolsonaro a dar um golpe de Estado. “Se a cúpula do EB [Exército Brasileiro] não está com ele, da divisão para baixo está. Assessore e dê-lhe coragem”, escreveu o coronel Jean Lawand Júnior, segundo revelou Robson Bonin, da Veja.
O assalto de Brasília em si incluiu ações coordenadas que podem bem ser parte do arsenal de sabotagem aprendido nos cursos de operativos especiais – assim como os atos terroristas de incêndio ao prédio da PF e derrubada de torres de energia em Rondônia – como apontou o repórter Allan de Abreu na revista Piauí.
Tem mais. PMs do DF contaram que houve não apenas inação do Batalhão da Guarda Presidencial, mas negativa de ajudar a PM a formar um cordão de contenção contra os invasores em 8 de janeiro. Um subtenente enquadrou os militares para que eles parassem de “frouxura”. Após a invasão, a PM foi até o Quartel-General do Exército com o objetivo de efetuar prisões de golpistas que estavam ali acampados. Foram impedidos pelo Exército, como mostrou a reportagem de Aguirre Talento, do UOL.
Isso permitiu aos invasores fugir de Brasília dentro de carros como a Hyundai encontrada com o sargento Paulo.
Sabemos que o acampamento montado diante do QG do Exército foi o celeiro de onde partiram tanto a invasão quanto o ataque à sede da PF e a tentativa de explodir o aeroporto de Brasília.
Sabemos, ainda, que a cúpula do Exército nada fez para desmontar esse acampamento e resistiu a diversas tentativas da PM.
(Por muito menos, o Exército fuzilou com 62 tiros o carro em que o músico Evaldo Rosa levava sua família para um chá de bebê, justamente sob a justificativa de que ele estava em área de proteção de uma unidade militar.)
E quem estava nos acampamentos? Familiares e esposas de militares. Não podemos esquecer que, desde o começo da carreira política de Bolsonaro, sempre foram as mulheres de militares da ativa que fizeram protestos, já que os maridos são proibidos de se pronunciar publicamente.
Esse contexto é essencial para entender o que significa a presença constante da esposa do general Villas Bôas no acampamento, assim como as conversas golpistas entre a esposa de Mauro Cid e Adriana Villas Bôas, filha do ex-comandante do Exército.
Se a história recente ensina algo, é que essas senhoras estavam apenas dando voz aos maridos, covardes, que queriam um golpe, mas tinham medo de serem punidos por isso.
Há mais elementos, mas vou parar por aqui. Diante da gravidade do que já se sabe, o mínimo que as Forças Armadas deveriam estar fazendo é começar um processo sério de purga contra aqueles que não só falaram, mas se envolveram em uma conspiração para derrubar nossa democracia.
Não é, obviamente, o que está acontecendo. Repetem-se explicações evasivas e lacônicas dizendo que as Forças abriram “um processo administrativo” e que “tais opiniões não representam o posicionamento oficial da força”. O ministro da Defesa, José Múcio, e o comandante do Exército, general Tomás Paiva, decidiram impedir que o golpista Jean Lawand Júnior assumisse uma representação militar em Washington, mas disseram a Lula que não expulsariam ninguém antes do fim da investigação do STF. Enquanto isso, a semente daninha do golpismo se amplia dentro da força.
A coisa é mais complicada do que se pensa.
Como demonstram as conversas no grupo de WhatsApp, é impossível manter controle sobre o que dizem oficiais em ambientes semiprivados, como serviços de mensageria instantânea. Ou saber se conspiram dentro desses ambientes digitais.
Com a revolução digital, entramos em uma era em que a proibição dos militares de falar de política torna-se, por questões técnicas, antiquada. Mesmo sendo improvável que “todos da divisão para baixo” sejam a favor de uma quebra democrática, os poucos que se aventuraram a conspirar mantêm, ainda, enorme poder social.
Estamos falando de uma casta de servidores públicos com estabilidade financeira, liderança hierárquica, presença em todo o território, e que, portanto, são referências sociais e culturais. Como lidar com esse grupo altamente radicalizado em um mundo digital fragmentado em que eles se tornaram microinfluenciadores?
Parece-me que a digitalização da política só aumenta os demais problemas da caserna que tardamos em enfrentar. Não será possível manter a hierarquia e disciplina num mundo do debate digital; nossa única saída é construir um Exército realmente legalista e democrático, de cabo a general. Isso passa pela punição, claro, mas também pela mudança radical do ensino militar e pela ampliação da participação da sociedade.
Não me parece ser esse o caminho que está sendo adotado nem por José Múcio nem pelo general Tomás Paiva. Nem por Lula.
Fonte: Via apublica.org