BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) – Os termômetros já caem a menos de 10° C, os cobertores começam a sair do armário e os aquecedores se acendem nos lares de Buenos Aires. O inverno se aproxima, e há pressa para que os canos enterrados ao longo de quase 600 quilômetros se encham de gás em direção às casas da província e da capital da Argentina, que juntas abrigam cerca de metade da população.
Trata-se do novo gasoduto Néstor Kirchner, cujo primeiro trecho começará a funcionar nesta terça-feira (20). O país aposta na obra monumental para alcançar a independência nessa fonte de energia até 2025 e aliviar sua dura crise econômica, já que o governo poderá desde já economizar nas importações e reduzir a falta de dólares que impulsiona a altíssima inflação.
A inauguração da grande tubulação também deixa a Argentina mais próxima de uma sonhada exportação da commodity ao Brasil, que, no entanto, ainda é considerada distante. Por isso causou rebuliço alguns meses atrás a sinalização do presidente Lula (PT) de que financiar o projeto seria uma prioridade para os brasileiros o que até agora não se concretizou.
“A Argentina tem a segunda maior reserva [de gás não convencional] do mundo, e o gasoduto permite dar vazão a esse gás, hoje limitado pela capacidade de transporte. Vamos poder dar um salto na produção e viabilizar a exportação a outros países, como Chile, Brasil e Uruguai”, afirma Flavia Royón, secretária de Energia da gestão do peronista Alberto Fernández.
Ela se refere a Vaca Muerta, uma massiva formação geológica de 30 mil km² (quase o tamanho de Alagoas) na Patagônia, na fronteira com o Chile, que faz com que o país só perca para a China em termos de gás de xisto disponível. A reserva foi descoberta há quase um século na serra homônima, onde, reza a lenda, jazia uma ossada de vaca.
Antes muito complicada e custosa, a exploração foi se tornando mais acessível nos últimos anos. Isso fez o ex-presidente Mauricio Macri assinar um acordo em 2017 para baixar os custos de operação apesar do apelo da ciência climática para evitar o investimento em qualquer combustível fóssil, ignorado até hoje pelo governo.
Desde então, a produção de Vaca Muerta vem surpreendendo e colocando a Argentina de novo no jogo. “É como se o país estivesse voltando 25 anos para trás, para recuperar o selo de exportador que tinha nos anos 1990, mas acabou perdendo por todas as suas crises”, afirma Rivaldo Moreira Neto, sócio da consultora Gas Energy.
No último ano, com a Guerra da Ucrânia e a disparada do preço do gás, “virou questão de vida ou morte” para um país deficitário deixar de depender de importações, diz ele, o que apressou a construção da primeira fase do gasoduto, concluída em apenas nove meses.
O trecho que entra em operação nesta terça liga Vaca Muerta até a província de Buenos Aires, a região mais populosa. A cerimônia de inauguração, porém, vai ter que esperar, porque o ministro da Economia, Sergio Massa, está em viagem e não pode ficar de fora da foto após ser o principal encampador do projeto. Ele é pré-candidato à Presidência pelo kirchnerismo.
Já o segundo trecho, a ser licitado em agosto, permitirá que o gás de Vaca Muerta chegue ao Norte da Argentina, abastecendo a produção de lítio dessa região nova mina dos olhos de Estados Unidos, China e Europa. Isso porque o gasoduto Néstor Kirchner será ligado ao já existente gasoduto Norte, de 1.454 km, que também chega ao Chile e à Bolívia.
Antes disso, porém, o fluxo desse gasoduto Norte terá que ser revertido, porque hoje o gás percorre o sentido contrário: serve para a Argentina importar o gás da Bolívia, com quem tem um contrato firmado até 2026. A licitação dessa reversão deve ocorrer nesta semana, com entrega prevista para meados de 2024.
A produção boliviana está em declínio e já não supre a demanda argentina durante o inverno, por isso o país também passou a importar GNL (gás natural liquefeito), através de navios-tanque. “Qualquer gás que o gasoduto Néstor Kirchner leve significa menos gás a ser importado. Não vai fazer a Argentina sair da crise, mas ajuda”, diz Ernesto López, presidente do Instituto Argentino de Petróleo e Gás (IAPG).
A secretária Flavia Royón diz que a economia em importações será de US$ 1,7 bilhão (cerca de R$ 8 bilhões) neste ano e de US$ 4,2 bilhões (R$ 20 bilhões) no ano que vem, poupando suas baixas reservas da moeda estrangeira. Royón também cita os empregos gerados e uma redução nos altos gastos com subsídios da conta de luz, já que a energia ficará mais barata.
Por essas razões, o gasoduto ainda é visto por analistas como de prioridade apenas nacional, e não binacional, como diz um acordo assinado pelos presidentes Lula e Fernández em janeiro. “Se há interesse dos empresários e do governo, e nós temos um banco de desenvolvimento para isso, vamos criar as condições para fazer o financiamento para ajudar no gasoduto argentino”, discursou o brasileiro na ocasião.
Royón afirma que Lula não prometeu financiar o projeto, mas apenas a empresa brasileira que produzirá os tubos para o segundo trecho do gasoduto. Procurado, o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento) respondeu que “até o momento não existe demanda ou previsão para a realização de operação de financiamento à exportação de bens” para o projeto argentino.
“Do ponto de vista de mercado, o Brasil não se beneficia desse gasoduto. Assumir esse risco seria uma decisão de Estado”, opina o consultor Moreira Neto. A possibilidade mais discutida hoje para enviar energia de Vaca Muerta até o Brasil é através de dutos já existentes na Bolívia, mas isso ainda deve demorar. “A Argentina ainda não tem a produção sustentada de que o Brasil precisa”, diz ele.
O aspecto ambiental tem sido ignorado na discussão: apesar de ser menos nocivo que carvão e diesel, ainda há críticas de cientistas e comunidades locais ao “fracking”, método usado para retirar o gás de xisto. Segundo relatório da consultoria Profundo e da ONG 350.org, se a exploração for acelerada, a emissão anual de carbono de Vaca Muerta em 2030 pode equivaler a 49% da meta da Argentina para aquele ano.
“Tudo em Vaca Muerta é assim, há um escudo midiático e do governo em nome da melhoria da economia. O gasoduto passou por cima de um bosque nativo, passou por comunidades que não foram consultadas ou não deram permissão”, diz Maria Victoria Emanuelli, coordenadora de campanhas da ONG, que acompanha a questão.
A resposta do governo argentino indica que o posicionamento não deve mudar. Perguntada sobre as críticas ambientais, a secretária de Energia afirmou apenas que “não há nenhum questionamento ao projeto”.
Autor(es): JÚLIA BARBON / FOLHAPRESS