Autores: Rubens Valente.
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Durante os quatro anos do governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), órgão indigenista oficial, praticamente lavou as mãos sobre o assunto, evitando qualquer diálogo com as lideranças indígenas. Mas aos poucos veio à tona a grande e silenciosa diáspora de milhares de indígenas que deixaram a Venezuela e ingressaram no Brasil em busca de melhores condições de vida. Hoje eles se espalham por 20 unidades da Federação, em meio a dificuldades financeiras e ambientes socialmente vulneráveis. O governo federal dá sinais de que agora pretende dar atenção ao tema.
“A gente não conseguia falar com o governo de Bolsonaro, era muito difícil entrar. A gente não conseguia ter contato com eles. Muitas vezes, desde 2019, tentamos dialogar com o governo. Só [começou o diálogo] neste ano. Não conseguíamos conversar com as autoridades. Ele fechava a porta para nós, sempre. Até agora não entendo por que a Funai não abria a porta. Acho que eles tinham assim racismo. Muito preconceito. Com venezuelanos e ainda pior com os indígenas”, disse José Moraleda, liderança da etnia Warao que hoje vive em Açailândia (MA). Ele chegou ao Brasil em 6 de setembro de 2019 com a esposa e dois filhos, de 11 e 14 anos de idade.
Um relatório produzido pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin) em abril de 2020 e obtido pela Agência Pública por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) informou a presença no Brasil, naquele ano, de “mais de 4 mil” indígenas venezuelanos da etnia Warao. Eles “geralmente ingressam no país pela fronteira terrestre em Pacaraima (RR) e muitos deles chegam com a saúde debilitada por desnutrição e problemas respiratórios”. Segundo o relatório, a maior parte dos indígenas vivia “do que eles chamam de ‘coleta’ (mendicância nas ruas)”. No mesmo mês, outro relatório da Abin apontou que os Warao “pedem dinheiro nas ruas da cidade” de Rio Branco, capital do Acre, e o grupo indígena “solicita ajuda financeira” após “ter deixado o abrigo na escola Campos Lima”.
Um estudo concluído no mês passado pela Organização Internacional para as Migrações (OIM), vinculada ao sistema das Nações Unidas, com apoio de diversos órgãos do governo brasileiro, demonstra que o tema, hoje, é muito mais desafiador. O levantamento estima que 9.300 indígenas venezuelanos hoje vivem em território brasileiro. Eles fazem parte do imenso êxodo do país atingido por uma grave crise econômica desde 2013. Estima-se que 7 milhões de pessoas tenham deixado a Venezuela nos últimos dez anos.
Só no Brasil há 487 mil refugiados e migrantes oriundos da Venezuela, segundo o relatório mais recente da OIM. O movimento continua intenso em 2023. De abril a junho, 43 mil venezuelanos entraram no Brasil, ante um retorno à Venezuela de apenas 15,5 mil. As entradas foram 29% maiores que as registradas no mesmo período no ano passado, segundo o relatório. Em Pacaraima (RR), na fronteira entre os dois países, e Boa Vista (RR) havia em junho passado “600 sem-teto refugiados e migrantes dormindo em espaços públicos”.
A pesquisa sobre os indígenas venezuelanos é considerada o primeiro passo de uma ação mais específica do governo brasileiro para o enfrentamento da questão. O levantamento teve o apoio técnico da Funai e dos ministérios dos Povos Indígenas (MPI), da Justiça e da Segurança Pública (MJSP), dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) e do Desenvolvimento, Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) e também do Escritório da População, Refugiados e Migração do Departamento de Estado dos Estados Unidos.
Em abril, indígenas Warao foram recebidos em audiência pela presidente da Funai, Joenia Wapichana. Foi a primeira vez, desde o início da crise migratória, que uma comitiva Warao foi recebida pelo governo em Brasília. José Moraleda, liderança Warao no Maranhão, disse que eles já entregaram um relatório para oito ministérios. “Nós precisamos dialogar, conversar com o governo, diretamente, para chegar a um acordo. Porque nós, os indígenas, não temos fronteiras, nós somos livres. As fronteiras quem fizeram foram os colonizadores. Precisamos dialogar com o governo para procurar políticas públicas para a população Warao porque a gente precisa trabalhar.”
O levantamento da OIM entrevistou 3.720 indígenas venezuelanos que hoje vivem no Brasil, distribuídos em 908 famílias, 65 comunidades e 13 etnias. Nesse universo, 70% eram Warao. Descobriu-se que a renda média mensal dessas famílias era de apenas R$ 522. “O fato de que em nenhuma região a média da renda mensal alcança o salário-mínimo reforça o diagnóstico da situação de vulnerabilidade em que se encontram as famílias participantes da pesquisa”, aponta o levantamento. Como consequência imediata, “a busca pela melhoria de renda pode seguir sendo um forte motivador de novas migrações internas pelo Brasil”.
Das famílias entrevistadas, “36% indicaram uma dificuldade média para garantir sua alimentação diária e 32% indicaram ter uma dificuldade alta”. “Com esses dados, destaque-se que a segurança alimentar também é uma preocupação durante as trajetórias migratórias e para as redes locais de proteção, considerando a necessidade da priorização de crianças e adolescentes, já que 51% dessa população está na faixa de 0 a 18 anos”, diz o estudo. Nas comunidades pesquisadas, 46% citaram que a principal fonte para conseguir alimentos é a assistência social. Outros 19% se alimentavam de doações.
Os deslocamentos dos indígenas pelo território brasileiro em busca de emprego e renda preocupam os pesquisadores, também, pelos perigos que as próprias viagens representam. O levantamento faz um alerta sobre a importância de dialogar com as lideranças indígenas a respeito das dificuldades que podem enfrentar no caminho, como “situações de aliciamento, fraudes e outras violências”.
A maior parte das famílias (71% no Nordeste e 55% no Norte) reside em moradias ligadas aos serviços de acolhimento socioambiental. Na amostragem pesquisada, 55% das comunidades não tinham acesso ao gás natural, 50% não tinha acesso à internet e 30% não contavam com tanque para lavar roupas. Outros 9% não tinham acesso à água potável e à energia elétrica.
A cientista social e doutora em antropologia Elaine Moreira, professora da Universidade de Brasília (UnB), acompanha o tema Warao desde 2017, quando dava aulas na Universidade Federal de Roraima (UFRR), e agora como docente da UnB, em parceria com o Observatório das Migrações da UnB (Obmigra). Ela também coordena o Observatório dos Direitos Indígenas (Obind) da UnB.
“Os Warao enfrentam diversos problemas. [Eles] já conheciam as dificuldades de venda de seus artesanatos nas grandes cidades na Venezuela ou nos seus pedidos de apoio financeiros ou de roupas e alimentos pelas ruas. No Brasil, conhecem o abrigamento, o controle rígido das vacinas, o controle dos seus dados, documentos, escolhas entre o pedido de refúgio e residência humanitária. […] Eles estão por quase todos os estados da Federação, a maioria em espaços urbanos e em abrigos. Muitas crianças Warao nasceram nestes espaços e não conhecem outros espaços de socialização. A grande maioria segue presente na região Norte, segue enfrentando problemas para sair dos abrigos, para reunir suas famílias, para ter acesso à escola e à saúde. Hora de o Estado brasileiro repensar o que pode fazer para acolhê-los”, disse Elaine.
A pesquisadora afirmou que os primeiros registros da presença dos Warao no Brasil apareceram na imprensa em 2014, como notícias sobre “ações de deportações de pequenos grupos indocumentados”.
“O divisor de águas acontece em dezembro de 2016, quando o grupo já contava com quase 500 pessoas e houve uma ação judicial para impedir a deportação de Boa Vista [RR] para a Venezuela. E os Warao conhecem o primeiro abrigo no bairro de Pintolândia [em Boa Vista]. No início, era uma quadra de esporte dividida, de um lado, os Warao e, de outro, venezuelanos criollos. Em março de 2017, acontece a primeira audiência pública, em Boa Vista, organizada pelo MPF [Ministério Público Federal]. Nesta audiência, podemos dizer que o Estado brasileiro toma ciência de que se tratava do povo indígena Warao, o segundo maior da Venezuela [segundo o censo de 2011, seriam um pouco mais de 49 mil pessoas], que não se tratava de povos transfronteiriços e que este povo estava, na sua maioria, localizado na região do Delta do Orinoco. Neste ano, também chegam a Boa Vista as agências da ONU, o número de migrantes aumenta. Finalmente, em 2019 é criada a Missão Acolhida, protagonizada pelas Forças Armadas brasileiras.”
Ou seja, o Brasil teve quase uma década para organizar políticas públicas específicas para os indígenas venezuelanos, como os Warao.
Um estudo da OIM de 2018 já apontava uma “significativa preocupação com a falta de interação adequada entre os indígenas migrantes e as instituições públicas e também com os povos e as organizações indígenas de Roraima”. Apesar de Roraima ter mais de 50 mil indígenas, de acordo com o censo de 2010, “a maior parte dos indígenas vindos da Venezuela afirma desconhecer os povos indígenas de Roraima”. A principal entidade indígena de Roraima, o CIR (Conselho Indígena de Roraima), entregou uma carta às autoridades em Brasília para indagar “por que não é procurado para discutir a situação dos venezuelanos em Pacaraima”.
A opção do Estado brasileiro de não abrir canais de diálogo específicos com os indígenas venezuelanos se aprofundou ao longo do governo Bolsonaro. Eles foram tratados indistintamente como todos os outros migrantes e refugiados, apesar das particularidades linguísticas, sociais e culturais.
Na pesquisa concluída no mês passado, a OIM apontou que “a migração aqui tratada apresenta características multifatoriais e apontam para um fluxo migratório que vem se consolidando e que já ganhou proporções nacionais. Constatou-se uma estimativa de 426 crianças indígenas deste fluxo, entre 0 e 06 anos, serem nascidas no Brasil. Para além do direito à nacionalidade dessas crianças, trata-se aqui do direito ao reconhecimento de suas identidades como indígenas, incluindo o vínculo de suas famílias com os territórios originários e os laços parentais”.
Isto é, já existem pelo menos 426 brasileirinhos Warao. Cabe, pelo menos desde 2014, às autoridades brasileiras definir que políticas públicas específicas o país vai apresentar a esses novos compatriotas.
Um outro estudo da OIM, de 2020, listou 25 recomendações ao Estado brasileiro. A primeira dizia: “O Estado brasileiro, a sociedade civil e os organismos internacionais devem manter constante diálogo com a comunidade indígena, local e migrante, identificando lideranças que possam facilitar a construção conjunta de soluções duradouras”.
Fonte: Via apublica.org