Autores: Rubens Valente.
Quer receber os textos desta coluna em primeira mão no seu e-mail? Assine a newsletter Brasília a quente, enviada às terças-feiras, 8h. Para receber as próximas edições por e-mail, inscreva-se aqui.
A comissão criada em fevereiro no Senado, à revelia dos indígenas, por senadores de direita de Roraima pró-garimpo aprovou na semana passada o seu relatório final que pode facilmente entrar para o rol das infâmias produzidas pelo Congresso Nacional. O documento, como tem sido característico nestes tempos de fake news que ajudaram a projetar a direita no Brasil, está cheio de desinformação, erros e mistificações.
Na página 11, por exemplo, o relatório assinado pelo senador que usa a alcunha de “Dr. Hiran” (PP-RR) diz, de forma inacreditável, que em 1967 o Serviço Nacional do Índio (SPI) “foi desmobilizado em favor” da Funai (então chamada Fundação Nacional do Índio). É uma deturpação grosseira. Três anos depois do golpe militar de 1964, que aliás em seguida também derrubou da presidência do SPI um médico civil profundamente dedicado à causa indígena, Noel Nutels (1913-1973), o órgão indigenista havia se transformado, inclusive por ação de militares que sucederam Nutels, num antro de desmandos, violência e corrupção contra os povos indígenas. Em 1967, os militares golpistas se aproveitaram desse cenário de descalabro, que ficou registrado num documento depois conhecido como Relatório Figueiredo, para extinguir o SPI e criar a Funai. A ditadura foi então acusada pela imprensa internacional de “genocídio”. O relatório do Senado omite tudo isso certamente por conveniência ideológica, a fim de pular capítulos tenebrosos da história das Forças Armadas.
Na sequência, o texto afirma falsamente que o destino do SPI foi “um desdobramento da 8ª Conferência Nacional de Saúde, marco da criação do Sistema Único de Saúde (SUS)”. Ou seja, a 8ª Conferência teria então ocorrido em 1967 ou um pouco antes, por conseguinte, o “marco” da criação do SUS foi uma iniciativa dos militares, ainda no início da ditadura. É uma inverdade louca. A 8ª Conferência só ocorreu em 1986, ou seja, em um governo civil que respirava ares de liberdade democrática duramente reconquistada um ano depois do fim da longa noite dos generais.
O relatório contém falsificações históricas ofensivas aos Yanomami. Diz, por exemplo, que “duas décadas” após “a chegada dos portugueses ao continente sul-americano” ocorreram expedições para a região que hoje corresponde ao estado de Roraima. “Naquela época”, afirma o relatório, “a região era habitada especialmente por indígenas da etnia Macuxi”. É um assassinato intelectual do papel dos Yanomami na história de Roraima. Inúmeros estudos antropológicos situam a presença Yanomami na terra hoje chamada Roraima há centenas de anos, alguns dizem, milhares de anos. O apagamento dos Yanomami brasileiros é coisa pensada. Teriam sido “importados” da Venezuela? Uma canalhice repetida em círculos bolsonaristas.
Em diversos trechos, é possível encontrar as digitais do que os militares realmente creem sobre os indígenas, os garimpeiros e o povoamento de Roraima. O relatório afirma que a construção da rodovia BR-174 “teve significativa importância no desenvolvimento regional, mas suas obras não ficaram ilesas às dificuldades impostas pelos povos indígenas locais”. De acordo com vários estudos do Ministério Público Federal (MPF) e das Comissões da Verdade locais e nacionais, lideranças indígenas, historiadores e jornalistas, na verdade a obra, que na parte final foi executada pelo 6º Batalhão de Engenharia do Exército, levou ao desaparecimento forçado de centenas, quiçá milhares de indígenas Waimiri-Atroari. É um dos capítulos mais tenebrosos da relação da ditadura com os indígenas. Eles até tentaram resistir à obra e, nesse processo, mataram funcionários da estrada e servidores da Funai. Mas, para o relatório do Senado, apenas a segunda parte da história existiu. Não houve nenhuma “dificuldade imposta” pelos militares aos indígenas, apenas o contrário. Só por essa falsidade o relatório deveria ser atirado em algum buraco do Congresso Nacional e esquecido.
A peça aprovada pelos senadores segue afirmando, em uma reunião de palavras que lembra a língua portuguesa, que, “após as demarcações das terras indígenas” sob o comando da Constituição de 1988, “a reiteração da atividade de terras indígenas [sic] recrudesceu os conflitos entre indígenas e não indígenas”. Ah claro, a raiz dos “conflitos” foi a demarcação do território, não foram os garimpeiros que invadiram, aos milhares, um patrimônio público de valor incalculável, roubando e sabotando a União, isto é, todos os brasileiros. Há várias formas de contar a mesma história, e o “Dr. Hiran” encontrou essa. Importante lembrar que o documento foi aprovado por unanimidade dos senadores, ainda que sob protesto de quatro senadoras.
Obviamente, essas deturpações históricas não foram inseridas no relatório por mero erro e sem maiores pretensões. Olhadas em conjunto, elas pretendem dar uma aparência de normalidade às invasões garimpeiras à terra Yanomami a fim de retirar a responsabilidade política do ex-presidente Jair Bolsonaro. Seu nome, aliás, nem sequer é citado no documento – assim como os do ex-presidente da Funai Marcelo Xavier e do ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles.
É verdade que a comissão não foi criada para analisar as raízes e os responsáveis pela atual crise, mas, contraditoriamente, o relatório se aventura a falar da “combinação de consequências negativas do garimpo ilegal, cuja presença em terras Yanomami já se manifesta por décadas”. Aqui podemos ver a típica meia-verdade de uma fake news, ao usar elementos da realidade para produzir uma falsidade. É verdade que o garimpo tem atacado a terra Yanomami desde os anos 1970, pelo menos, mas o volume, com estimados 20 mil invasores, e trágica consequência, como a explosão dos casos de malária, se acentuaram de 2017 para cá, ou seja, são relativamente recentes, com uma acelerada gravidade durante o governo de Bolsonaro. Apenas entre crianças, mais de 570 Yanomami perderam a vida durante o governo que terminou em dezembro de 2022. O único paralelo dessa situação só é encontrado no final dos anos 1980 e início dos 1990, quando o poder púbico enfrentou e reduziu drasticamente a atividade ilegal garimpeira.
O relatório nada diz sobre isso (o número 570 magicamente sumiu). Mas ele se propõe a citar as possíveis razões da crise: a “catástrofe econômica venezuelana” e o “tsunami migratório que dela decorreu” (uma insinuação sem provas sobre os Yanomami, como veremos abaixo); a “nossa própria crise econômica que se arrasta desde o segundo mandato de Dilma Rousseff” (ignora resultados positivos do PIB em 2017, 2018, 2019, 2021 e 2022); os “impactos econômicos e sanitários da pandemia de Covid-19” (agravados pela demora e a leniência do governo na aquisição das vacinas, deixou de dizer); e até “a escassez de chuvas nos dois últimos anos”. Os senadores conseguiram a proeza de eliminar o personagem número um de toda a crise, Bolsonaro, a começar pelo seu discurso público de incentivo ao garimpo (ele próprio se dizia um garimpeiro) e pelo encaminhamento ao Congresso de um projeto de lei que pretendia legalizar a extração do ouro. Isso soou como música para os ouvidos dos garimpeiros, que invadiram a terra Yanomami com a esperança renovada numa suposta legalização da prática que fora sinalizada pelo presidente da República.
Durante o governo Bolsonaro, todo o sistema de repressão aos crimes ambientais em terras indígenas foi sabotado e meticulosamente desmontado no Ibama, na Funai, no ICMBio, no Ministério do Meio Ambiente. Durante o governo Temer, o DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral) se transformou numa agência, a ANM (Agência Nacional de Mineração), repetidamente sabotada e esvaziada, enfim sem condições de exercer o seu poder de fiscalização sobre os locais de mineração. O Senado também pulou sobre tudo isso.
O relatório retoma a primeira “explicação” da crise, a situação venezuelana, para afirmar que “muitos indígenas” vieram “do país vizinho em busca de assistência do lado brasileiro”. Reforça uma fake news que circula nos círculos bolsonaristas desde o início da crise, a alegação de que os indígenas que morreram de desnutrição eram “venezuelanos”, e não brasileiros.
Todos os indigenistas e especialistas em saúde sérios empenhados na crise Yanomami concordam que, diferentemente de outras etnias, como os Warao, por exemplo, os indígenas Yanomami não costumam vir “buscar assistência” no Brasil, até pelas imensas distâncias das aldeias em que vivem na mata. Se ocorreram, foram casos extremamente pontuais. A Agência Pública passou 21 dias em Roraima, de fevereiro a março, e não encontrou um único caso do gênero. Os senadores dizem, no relatório, que a situação foi constatada “em diligências desta Comissão tanto nos hospitais de Boa Vista quanto no posto de Auaris, pelo Tuxaua Miguel” e que a comissão “conversou com pacientes venezuelanos que recebiam tratamento eu [sic] polos-base brasileiros”. Por acaso o tuxaua agora é senador membro da comissão?
O relatório não cita o número nem os nomes desses supostos pacientes. Eu revirei todos os documentos colocados à disposição da consulta pública pelo Senado e nada achei sobre tais detalhes. Não há dúvida de que o sistema de saúde de Boa Vista atende indígenas oriundos da Venezuela. Isso é uma coisa; outra bem diferente é insinuar que os Yanomami que morreram ou começaram a aparecer desnutridos, quase à beira da morte, tinham origem na Venezuela. Mas ao relatório pouco interessa fazer essa diferenciação, o que vale mesmo é deixar afirmações como uma generalização solta, com o poder de alimentar as loucas teorias conspiratórias da direita.
No campo das conclusões, o relatório repete platitudes e enumera ações básicas que um estagiário de medicina seria capaz de escrever. Por exemplo, “manter e intensificar campanhas de vacinação, com busca ativa e diálogo respeitoso com as comunidades”. Sério? Aquilo que vinha sendo feito desde os anos 1990, pelo menos, inclusive com apoio de organizações não governamentais, e cuja confiança foi repetidamente sabotada pelo ex-presidente da República Bolsonaro?
Várias das medidas “recomendadas” já têm sido tomadas ou encaminhadas, mesmo que com entraves e dificuldades, inclusive pela leniência das Forças Armadas, pelo atual governo. Na verdade, muitas deixaram de ser tomadas pelo governo anterior.
Tudo somado, o relatório aprovado pelo Senado é uma peça de ficção custeada pelo dinheiro do contribuinte. Em apenas duas viagens, aliás, custou mais de R$ 690 mil aos cofres públicos, conforme a Pública já revelou. Toda a comissão foi, do início ao fim, um desses palcos ideológicos que a direita tem sentido prazer em montar, num processo de degradação do Poder Legislativo. Nada ajudou nem esclareceu, só tomou o tempo das autoridades e indígenas que estavam empenhados numa emergência sanitária. Quatro meses depois, terminou de forma tão esdrúxula quanto começou. Parafraseando o poeta, que seja finita enquanto acabe.
Fonte: Via apublica.org