Autores: Laura Scofield.
Um homem branco de camisa da CBF e calça jeans com manchas de sangue está deitado na grama e olha para a câmera. “Roubaram nossas urnas, nosso presidente não é o Lula, nosso presidente é o Bolsonaro, ele ganhou, nós sabemos, todo mundo sabe. Nós estamos aqui lutando pela nossa liberdade, eu fui, olha o que fizeram comigo, olha o que os policiais fizeram, saiam dos sofás, lutem, essa é a última chance de vocês”, apela ele, que está com a cabeça apoiada no colo de outro homem vestido com uma camisa amarela com os dizeres “intervenção militar federal”. Ao fundo, sons de explosão e conflito. Era 8 de janeiro de 2023, e o homem dizia ter sido baleado na perna por um policial militar do Distrito Federal (DF).
Até agora, a utilização de munição letal para a contenção de manifestantes no 8 de janeiro pela Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) não havia sido confirmada. Documentos internos produzidos pela Tropa de Choque da PMDF e acessados pela Agência Pública mostram que a denúncia do homem baleado é verídica, houve sim um disparo que atingiu um golpista. Os documentos, contudo, trazem mais informações sobre o contexto que levou o policial a apertar o gatilho.
De acordo com o relato acessado pela reportagem, assinado pelo então sargento Beroaldo Júnior, o disparo foi feito em legítima defesa, enquanto ele e sua colega, à época a cabo Marcela Morais, eram espancados por manifestantes depois de terem sido empurrados e caído de uma altura de cerca de 2 metros. As imagens da queda ficaram famosas à época e mostram a tropa de choque recuando após se deparar com um grupo de golpistas em cima da passarela que leva às cúpulas do Congresso Nacional.
No texto, Beroaldo Júnior diz que, após a queda, manifestantes “saltaram em direção aos policiais militares que caíram do ‘delta’ e passaram a atacá-los com evidente intenção de matar, desferindo golpes de barra de ferro e de pau na cabeça. Na ocasião, a SD Marcela fora cercada por um grupo maior de vândalos que a agrediam violentamente e tentavam subtrair o capacete blindado e sua arma, no intuito de neutralizar qualquer intenção de auto defesa”.
Assim, o autor do disparo afirma que “não se dispunha de outra opção técnica suficiente para fazer cessar a grave ameaça a vida da referida policial”, pois já teria utilizado instrumentos de menor potencial ofensivo sem sucesso. “Enquanto eu mesmo era brutalmente atacado e lutava para manter a própria integridade física, saquei minha arma e efetuei disparo em direção aos principais atacantes” da colega. Ele diz que “um dos atacantes foi atingido e recuou, diminuindo a fúria da incursão” contra a policial, que conseguiu ficar de pé, e com a ajuda de um colega, entrar na “proteção, ainda precária, da linha de escudo”.
Nos dias seguintes ao 8 de janeiro, Marcela compartilhou fotos de seus ferimentos, confirmando o ataque sofrido por ela. Todos os integrantes do pelotão que os dois integravam ficaram feridos ou com algum tipo de lesão, de acordo com os documentos — Beroaldo disse que ficou 13 dias sem trabalhar para se recuperar. Porém, mesmo com as circunstâncias que configurariam legítima defesa, a PMDF omitiu a existência do tiro.
Mais tarde, Beroaldo e Marcela foram promovidos por seus atos de bravura — Beroaldo virou subtenente e Marcela, cabo. Em entrevistas que deram à imprensa para falar sobre os ataques que sofreram, os dois omitiram o tiro com munição letal dado pelo subtenente. A Cabo Marcela, por exemplo, disse ao Jornal Nacional que seus colegas utilizaram um “lançador” para tirar os agressores de cima dela e o Subtenente Beroaldo apenas citou o uso de munição não letal.
Com o silêncio da PMDF, a informação só foi confirmada pela Pública com o acesso aos relatórios produzidos pelo Choque da PMDF sobre os atos golpistas, enviados à Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dos Atos de 8 de Janeiro de 2023 depois de um requerimento elaborado pelo deputado bolsonarista Delegado Alexandre Ramagem (PL-RJ), ex-presidente da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) sob Bolsonaro, e aprovado pela comissão. Além de revelar o uso de munição letal contra o homem, os documentos acessados trazem mais detalhes da ação dos PMs e do clima de agressividade vivido por eles durante a tentativa de contenção dos golpistas em 8 de janeiro.
Nas últimas semanas, a PMDF tem enfrentado repercussão negativa de sua atuação nos atos golpistas, já que integrantes da alta cúpula da corporação foram presos preventivamente por suposta omissão. Segundo a investigação da Procuradoria Geral da República (PGR), a cúpula da polícia militar deixou de agir para impedir o vandalismo contra as sedes dos Três Poderes, em razão de um suposto alinhamento ideológico com os manifestantes golpistas.
Questionada, a Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal (SSP-DF) não respondeu às perguntas da reportagem. Em nota, afirmou que “todos os fatos relacionados à operação do dia 8 de janeiro de 2023 estão em processo de apuração” e que “não comenta investigações em curso”. A Polícia Militar não retornou até a publicação.
Agressividade dos golpistas
Os documentos, que contam com relatos em primeira pessoa e fotos dos policiais que estiveram em serviço nos dias 7 e 8 de janeiro, também trazem mais detalhes do clima de agressividade vivido por alguns dos agentes de segurança que trabalharam na Esplanada. Cinco batalhões da Tropa de Choque atuaram nos dois dias, somando um total de 48 policiais, de acordo com os relatórios acessados.
Um deles era o 3º Batalhão de Patamo, apelidado de Patamo Alfa, que continha 22 agentes, efetivo considerado “insuficiente” no relatório de operação de serviço diário. Os documentos informam que às 13h30 o grupo teria se deparado com manifestantes portando “gandolas militares, máscaras de gás, mochilas e bastões”, materiais que eles consideraram “atípicos para manifestações de caráter pacífico”. Durante o confronto, disseram ter sido atacados com “coquetéis molotov, pedras, paus, fogos de artifício e estilingues”.
Relatam ainda que, depois do dia de trabalho, às 23h, “⅔ dos policiais do Patamo Alfa foram encaminhados a atendimento médico em razão dos múltiplos ferimentos sofridos ao longo do dia”. No total, o Choque da PMDF aponta que 19 policiais ficaram feridos, dos quais 9 precisaram de dispensa médica.
É no 3º Batalhão que estavam lotados Marcela e Beroaldo. Os registros dizem que, desde o princípio, o grupo teria sido alertado sobre a “possibilidade de eventual confronto com os manifestantes, tendo em vista que na noite anterior houve um princípio de tumulto após tentativa de fechamento da via N1, na entrada do Setor Militar Urbano” — região próxima ao acampamento do QG.
Em seu relato pessoal, Beroaldo acrescenta ainda que seu batalhão ficou sobrecarregado depois que alguns militares “desistiram” de lutar. “Por diversas vezes tive que intervir motivando/orientando as tropas que nos apoiavam a não desistir nem abandonar o confronto, e mesmo assim alguns policiais de tropa que nos apoiavam, bem como da força nacional, desistiram de lutar sobrecarregando a tropa de choque”.
Outros relatos de policiais lotados em outros batalhões seguem na mesma linha sobre a agressividade. O motorista de uma das viaturas que foi danificada diz que, assim que chegou na Esplanada, às 15h15, se deparou com um “clima muito hostil”, no qual “centenas de manifestantes enfurecidos arremessavam todo e qualquer tipo de objeto que se encontrava a disposição”. Outro chamou os manifestantes de “terroristas” e disse que “a grande desvantagem de efetivo” impediu a identificação dos que estavam atacando os policiais no início do confronto. Um depoimento, entretanto, tenta justificar a agressividade dos manifestantes ao dizer que ela aconteceu por “nervosismo” e diz, às 15h, que a manifestação era “pacífica” e depois foi controlada, o que conflita com os outros relatos.
Os documentos ainda apontam que a situação de efetivo insuficiente foi complicada pela falta de munição química, que chegou a ficar “praticamente zerada” em um momento do confronto. Alguns relatórios dizem que os policiais por vezes tiveram que esperar ou recuar enquanto aguardavam um novo carregamento. Interlocutores do Supremo Tribunal Federal (STF) ouvidos no início do ano pela Pública disseram que a Polícia Judicial, responsável por proteger o prédio do STF, chegou a emprestar equipamentos aos PMs, que estavam se expondo a riscos por não estarem devidamente equipados.
Como justificativa, o choque da PMDF alegou em seus relatórios internos que a manifestação “foi sem precedentes, com uma utilização de munições de menor potencial ofensivo muito superior às demais atuações do Batalhão” e disse que “a última referência era a manifestação do dia 24 de maio de 2017, na qual foram utilizadas aproximadamente 900 munições de elastômero, incluindo o compartilhamento com outras tropas”. De acordo com eles, no 8 de janeiro esse valor saltou para 3 mil e 500 munições.
No total, teria sido gasto mais de R$ 805 mil em munições usadas no dia. Os documentos ainda relatam que alguns manifestantes conseguiram tomar o equipamento de outras forças e o utilizaram contra a PMDF. Seis viaturas foram danificadas e 78 balas 9mm foram extraviadas no conflito.
Em resumo, os relatórios assumem que o efetivo foi insuficiente e que a munição acabou antes da hora, mas, ainda assim, dizem que “todas as providências internas foram adotadas” na preparação para o 8 de janeiro.
Alguns relatos dos documentos também apontam possíveis falhas da PMDF no dia, por mais que não as caracterizem dessa forma nas descrições. Por exemplo, mostram que um dos batalhões, que estava de sobreaviso no dia, demorou 1h40 para chegar depois de acionado. O fato dos policiais estarem de sobreaviso — quando esperam em suas casas por algum chamado — e não de prontidão, quando ficam prontos nos quartéis, o que gera uma resposta mais rápida, foi criticado na Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara Legislativa do Distrito Federal, que ouviu grande parte da alta cúpula da Polícia Militar hoje presa preventivamente.
Resposta às críticas da imprensa
Os documentos acessados também buscam explicar internamente dois vídeos amplamente divulgados pela imprensa — inclusive pela Agência Pública — que geraram críticas à atuação dos policiais.
Um deles mostra um ônibus Centurion da Tropa de Choque da Polícia Militar separando os manifestantes, que já haviam tomado o Congresso, da rua que leva para a Praça dos Três Poderes, onde estão o Palácio do Planalto e o STF.
O veículo é utilizado para lançar bombas de gás e outros materiais de dispersão de multidões. Contudo, de acordo com imagens gravadas pelo STF, ele não atuou para conter as centenas de golpistas bolsonaristas já que, após cerca de 12 minutos da gravação, os manifestantes ultrapassaram a barreira sem encontrar resistência. Na época, os interlocutores do STF ouvidos criticaram os PMs por não impedirem os manifestantes na rua, antes de chegarem ao prédio, também em uma tentativa de diminuir a responsabilidade da Polícia Judicial pela invasão.
Já os documentos dizem que um Centurion utilizado “apresentou problemas mecânicos e precisou ser retirado do local” — essa informação é dada no contexto da chegada dos manifestantes ao STF, o que indica que se trata do veículo que aparece nas imagens. Os PMs justificam ainda que o pelotão de choque “contava com pouca munição química e elastômeros”, então decidiram a rua até a entrada do STF para se juntar a outras forças, ao invés de agir no local.
A outra gravação que gerou danos à imagem da PMDF abordada nos relatos acessados foi a que mostra uma viatura do choque saindo da lateral do Congresso enquanto golpistas invadiam os prédios. Os policiais consideram que o vídeo foi “retirado de contexto” e alegam que a saída do choque do local ocorreu para socorrer outros policiais, entre eles o Comandante Geral da PMDF, que estavam encurralados e em perigo dentro do Congresso. A justificativa também foi apresentada por policias ouvidos pela CPI da CLDF.
“Frisa-se que em nenhum momento houve qualquer participação, conivência ou convite para se entrar no Congresso. A intenção era somente apoiar a saída dos policiais feridos e do Comandante Geral sem maiores intercorrências”, dizem os policiais que, mais uma vez, dizem que estavam com pouca munição para atuar.
Fábio Augusto Vieira, ex-comandante da PMDF, é um dos presos preventivamente na investigação por suposta omissão e conivência com os golpistas na contenção dos atos de 8 de janeiro.
Fonte: Via apublica.org